Nome de referência do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) para planos de saúde, a advogada Ana Carolina Navarrete questiona a eficiência dos canais de diálogo entre a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e a sociedade civil. A agência, que não regula planos coletivos, não cumpre seu papel de exigir transparência sobre sinistralidades, diz. Para Navarrete, coparticipações e franquias são mais vantajosas para as operadoras. As franquias, aliás, seriam problemáticas por permitirem que os usuários arquem sozinhos por assistências.

A ANS disse que só voltaria atrás com relação ao teto de 40% para coparticipações em caso de determinação da Justiça. Agora anulou a norma. Como vê esse movimento? 

A ANS está diante de uma grave crise de legitimidade. TCU, Ministério da Fazenda, OAB e entidades de defesa do consumidor questionam, com razão, a forma da agência fazer regulação não só sobre franquia e coparticipação, mas também sobre reajustes. A pressão deu resultado. A ANS parece estar percebendo que, se continuar normatizando para beneficiar apenas os interesses das empresas, sua razão de ser se esgota.

Prometeram realizar uma audiência pública sobre coparticipação e franquia…

Uma audiência pública não resolve o problema. Mais do que abrir espaços de participação social, é preciso que a ANS realmente incorpore as sugestões que vêm da Defesa do Consumidor. Senão estaremos, mais uma vez, em um debate pró-forma.

No mês passado o Idec deixou a Câmara de Saúde Suplementar da ANS. Esses canais não funcionam?

Percebemos que não havia consequência estar ou não estar na Câmara. Nada do que sugeríamos era acolhido. O Idec frequentava aquele espaço, pontuava questões e o máximo que acontecia era registrarem os nossos protestos em ata e mais nada. As audiências e consultas públicas são um pouco melhores que a Câmara. Mas, ainda assim, são poucos efetivos. Em uma consulta pública você tem de fazer um relatório, justificar porque cada contribuição foi ou não acatada. Já a audiência pública tem o potencial de mobilizar, levar a discussão para o público, principalmente se é transmitida. Mas poderiam ser melhores se a agência disponibilizasse documentos em linguagem acessível. O que vemos, em geral, é uma discussão restrita à agência, empresas e consultorias de atuária. A ANS fala o idioma das empresas. Não dialoga com a sociedade, só com as consultorias de atuária.

Qual é a posição do Idec com relação a planos com coparticipação e franquia?

São instrumentos para fazer o consumidor usar menos o plano de saúde. São muito vantajosos para empresas e nem tanto para os usuários, porque trazem uma barreira ao acesso. A coparticipação e a franquia têm previsão legal. Mas alguns órgãos de governo entendem que a franquia não é compatível com o sistema brasileiro porque o artigo primeiro da lei de planos de saúde admite só dois tipos de contrato: um em que a operadora arca integralmente com o valor da assistência e outro em que arca parcialmente. A operadora tem que arcar ou com parte ou com tudo, mas a franquia permite, em algum momento, que o consumidor arque com o valor completo do procedimento. Pensemos  em uma franquia de R$ 500. Se você tem que fazer uma consulta de R$ 200 e um exame de R$ 150, no final sai tudo por R$ 350. Nesse caso, o consumidor vai pagar sozinho. A normativa do Conselho de Saúde Suplementar, superior à ANS, veda expressamente esse tipo de situação.

Planos individuais estão sendo abandonados enquanto os coletivos, com mensalidades mais baratas, só aumentam. Mas, com aumentos livres, o desconto pode rapidamente ser compensado. É uma armadilha do mercado?

O problema é ter um duplo padrão regulatório, um ambiente regulado e outro não. Qual é a tendência nesse caso? É caminhar para o menos regulado. O Rafael Vinhas, gerente da ANS, já havia mencionado que os planos individuais, no longo prazo, são mais lucrativos porque têm sinistralidade menor do que os coletivos. Mas o mantra do mercado diz que os individuais dão prejuízo. Não é bem assim. São, ao contrário, mais sustentáveis. Só que as exigências dos contratos coletivos são bem menores e, então, as operadoras priorizam essa modalidade. De toda forma, enquanto houver um duplo padrão regulatório vai haver fuga para o ambiente menos regulado, com a criação de planos coletivos para pessoas jurídicas e planos por adesão em associações quase fantasmas, criadas com o único objetivo de contratar planos de saúde. Recomendamos que as pessoas não entrem nessa, porque o poder de barganha é muito baixo nesses casos.

Na audiência sobre reajustes, a agência sugeriu incluir a Variação dos Custos Médico-hospitalares no cálculo. O que acha?

Há uma limitação muito grande aí porque só temos os dados da agência. A ANS declara que o teto praticado pelos planos individuais acompanhou a VCMH até 2016. A partir daí, a “boca do jacaré” (gráfico do descolamento) abriu. O teto do reajuste ficou acima dos custos médicos hospitalares calculado pela ANS. Então, tem algo de errado nessa metodologia. A nota técnica do TCU a este repeito levanta a suspeita sobre conluio das empresas. Em um mercado que tende a se concentrar, podem existir manobras para subir os reajustes dos planos coletivos e levar isso para os individuais, porque a média dos aumentos dos coletivos com mais de 30 pessoas é um fator no cálculo dos individuais.

Na mesma audiência, representantes das operadoras sugeriram acabar com o teto e aplicar aumentos em função da sinistralidade de cada um. Há transparência suficiente para tal?

Não. A ANS deveria intervir no mercado de coletivos, não no domínio econômico, mas sim para garantir regras de clareza e diminuir assimetria de informação. É esse o papel de uma reguladora e a agência não cumpre. Não intervém para garantir que os contratantes tenham acesso à informação, aos custos assistenciais dos funcionários ou aos reajustes praticados em outras carteiras, para barganharem melhores contratos. As operadoras não são obrigadas a fornecer detalhes sobre sinistralidade. Mas deveriam ser, porque todas as partes devem ter as mesmas informações na mesa para negociar. Esse vácuo de informações é ainda mais grave para uma empresa de 100 empregados, por exemplo.

Em tese, o pool de risco serve para isso…

Existe uma nota técnica da própria ANS dizendo que o pool de risco não é tão eficaz. Especialmente no caso dos coletivos empresariais. Quando veio essa regra,  a ideia era que as operadoras reunissem todos os planos de até 30 vidas e aplicassem um reajuste único, calculando o risco como se fosse um grande grupo, para evitar reajustes anômalos. Mas a gente fez uma pesquisa em 2014 mostrando que o reajuste de planos até 30 vidas pode chegar a até 42%. Então, no final das contas, o pool não garantiu reajustes menores. Há uma média, mas, ainda assim, tem reajustes muito altos. O número de vidas da carteira não influencia tanto no poder de barganha. Decisiva é a capacidade técnica e informacional do contratante.