Depois das clínicas populares, agora é a vez das empresas de cartões pré-pagos ou de descontos em saúde atraírem clientes que perderam o convênio médico ou desistiram de ficar nas longas filas de espera do Sistema Único de Saúde (SUS). Pelo menos 8 milhões de brasileiros já são usuários desse serviço, segundo levantamento feito pelo Estado com as principais empresas do setor. Para fins de comparação, o número ultrapassa a quantidade de clientes das duas maiores operadoras de planos de saúde do País juntas.

 De forma geral, tanto os cartões pré-pagos quanto os de descontos cobram mensalidade baixa (a partir de R$ 14,99) em troca de descontos em uma rede conveniada. A particularidade do serviço pré-pago é que, além da mensalidade, ele exige que os procedimentos sejam pagos com créditos depositados no cartão.

Embora em expansão, o serviço é visto por especialistas em saúde e entidades de defesa do consumidor como uma espécie de convênio com cobertura básica, mas sem regulamentação adequada por não ser classificado como um plano de saúde. A própria Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que regula as operadoras de planos, criou uma cartilha explicando as diferenças entre os dois serviços e os cuidados que o consumidor deve ter ao optar pelos cartões. Entre as críticas estão o fato de os cartões não garantirem atendimentos ilimitados nem uma lista mínima de procedimentos cobertos.

Já os usuários do serviço e as empresas que operam nesse ramo afirmam que o modelo é uma alternativa para quem quer ter acesso rápido a consultas e exames, mas não tem condições financeiras de pagar a mensalidade de um plano.

Maior empresa do setor, a Cartão de Todos (que dá descontos também em estabelecimentos de educação e lazer) viu o número de adesões mensais triplicar este ano. “No ano passado, tínhamos 30 mil por mês. Neste ano, o número passou para 100 mil”, conta Altair Vilar, presidente da companhia, que possui 7,8 milhões de usuários. Na rede conveniada que dá descontos aos portadores do cartão, a consulta médica com um clínico-geral sai por R$ 20.

Foi atraída por esses preços que a dona de casa Maria do Carmo Rocha Souza, de 55 anos, fez o cartão para a mãe, Joana, de 87. “A gente tinha convênio, mas cancelamos por causa do preço e passamos a usar só o SUS. Só que ela tem diabete, pressão alta e Alzheimer e a consulta na rede pública demora demais. Na idade dela, não dá para esperar”, afirma.

Para Antônio Eduardo de Carvalho Brigagão, CEO da Vale Saúde Sempre, empresa de cartão pré-pago com mais de 200 mil clientes, as consultas e exames saem mais em conta aos usuários dos cartões porque as companhias do ramo negociam com as clínicas da mesma forma que as operadoras de saúde. “Elas aceitam baixar o preço porque levamos mais clientes.”

Clientes corporativos. O baixo custo da mensalidade dos cartões fez as companhias atuantes no setor oferecerem o produto não apenas para pessoas físicas, mas também para pessoas jurídicas interessadas em dar o cartão aos seus funcionários. São, geralmente, pequenas ou médias empresas que não oferecem plano de saúde aos trabalhadores.

Com foco nesse mercado, a Doutor Já atende 50 empresas, que, juntas, têm 6 mil trabalhadores. “Algumas oferecem só o cartão de desconto e outras depositam um valor mensal para que os funcionários possam pagar procedimentos”, diz Gustavo Valente, CEO da Doutor Já.

A Ticket, conhecida pelos benefícios refeição e alimentação, lançou em agosto o Ticket Saúde, que também permite as duas modalidades: só desconto ou créditos para o funcionário. “O custo médio para a empresa é de R$ 28 por colaborador”, afirma Adriana Serra, diretora de produtos da Ticket.

Outra gigante que entrou no mercado de cartões pré-pagos de saúde foi a Ultrafarma. Em outubro, a companhia lançou o cartão Sidney Oliveira, que também dá direito a descontos em procedimentos médicos e odontológicos na rede conveniada.

Apesar dos descontos dados pelos cartões, a Proteste alerta que nem sempre o serviço pode ser vantajoso. “A pessoa tem de pagar a mensalidade e mais os procedimentos que for fazer. Se fizer muitas consultas e exames, não vai compensar”, diz Luiz Costa, analista de negócios da entidade.

Para Marília Louvison, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP, os cartões podem deixar pacientes desprotegidos. “Esse formato não garante continuidade do cuidado nem a resolutividade porque o atendimento vai até onde o paciente pode pagar.”

Questionadas, as empresas do setor afirmam que o serviço tem como foco a atenção primária, com quadros de baixa complexidade e ações de prevenção e promoção da saúde.

Preço menor, mas nem tudo é tão barato

Hipertensa, a aposentada Maria Gonçalves, de 79 anos, ficou sem o remédio para a doença quando foi retirar uma nova receita com seu médico do SUS e descobriu que ele havia deixado o cargo.

Sem previsão de quando um novo profissional chegaria à Unidade Básica de Saúde (UBS) onde se consulta, na zona norte da capital paulista, a idosa decidiu aderir a um cartão de descontos após ver uma propaganda do produto na televisão, protagonizada pela apresentadora Ana Maria Braga.

“Pedi para o meu filho fazer o cartão para mim na internet porque a consulta é barata. Fiz o cartão num dia e no outro já consegui marcar com o geriatra”, conta Maria.

Para a aposentada, essa foi a única opção que encontrou para não ficar sem o tratamento para pressão alta. “No SUS não dava para esperar e um plano de saúde o idoso não consegue pagar. É no mínimo R$ 800 por mês”, lamenta.

Também cansada da demora na rede pública, a atendente Larissa Marques Santos, de 24 anos, contratou há três semanas o serviço para ela e o filho. “Estou com pedra na vesícula e só para marcar um clínico está demorando um mês. Imagina quanto não vai demorar para fazer um ultrassom”, diz ela.

A jovem foi atraída também pelo fato de a mensalidade ser cobrada por família e não por pessoa. Ou seja, mesmo colocando a criança como beneficiária do serviço, o valor pago por mês será o mesmo.

Larissa perdeu o plano de saúde há três anos, quando saiu de um emprego em que era registrada em regime CLT. “Agora não tenho mais convênio e estou dependendo só do SUS mesmo”, conta a atendente.

Os cartões de desconto também são usados por quem quer economizar em tratamentos odontológicos. “Precisava fazer um canal, uma coroa e limpeza e, com o cartão, ficou pela metade do preço e consigo parcelar em oito vezes”, relata a atendente comercial Andréa Maria de Santana, de 47 anos.

Ressalvas. Embora aprovem os preços baixos das consultas e a rapidez na marcação do atendimento, alguns clientes dos cartões reclamam do custo dos procedimentos mais complexos.

“Acho que os exames deveriam ser mais em conta. Minha mãe precisou fazer uma ressonância magnética e dois exames de vista e eles custaram R$ 600. Não foi tão mais barato do que em outros laboratórios”, diz a dona de casa Maria do Carmo Rocha Souza, de 55 anos.

Falta regulamentação, diz especialista em saúde pública

1. Qual é a sua avaliação dos cartões pré-pagos e de desconto em saúde?

As demandas em saúde nunca são isoladas. Os pacientes precisam de uma rede de cuidados. O idoso, por ser mais doente e precisar de atendimento com frequência, se sente atraído pelos preços baixos, mas pode ficar desprotegido quando precisar de um atendimento de maior complexidade, pois não terá cobertura.

2.Como dar mais proteção aos usuários desse tipo de serviço?

É preciso construir uma regulação porque, atualmente, esses cartões estão num vazio regulatório em que não entram no escopo de nenhuma agência. Na área da saúde, uma prestação de serviço não pode ser tratada apenas como uma relação de consumo.