A estratégia mercadológica das operadoras privadas de saúde modifica-se de forma rápida, acentuada, a ponto de exigir reflexões críticas quanto à necessidade de respostas suficientes e igualmente céleres do Direito, enquanto sistema apto a dar concretude às relações jurídicas fundamentais, dentre elas os contratos.

Se anteriormente a grande maioria dos contratos de prestação de serviços de saúde era celebrada na modalidade individual ou familiar (Lei 9.656/98, artigo 16, inciso VII, alínea “a”; RN 195/2009 da ANS, artigo 3º), atualmente as operadoras, ao tempo que limitam as pactuações em tais categorias, oferecem com bastante voracidade formas coletivas de contratação. Há incessante contratualização pelos tipos “coletivo empresarial” e “coletivo por adesão” (Lei 9.656/98, artigo 16, inciso VII, alíneas “b” e “c”; RN 195/2009 da ANS, artigo 5º e 9º, respectivamente), envolvendo, respectivamente, pessoas jurídicas de caráter profissional ou pessoas jurídicas de vínculo associativo.

Evidente que essa tendência resta facilitada (e até parece ser incorretamente incentivada) considerando regramento secundário pelo qual à ANS não cabe interferir ou mesmo fixar preços e reajustes das mensalidades em regimes contratuais coletivos, abrindo espaço para “ampla” liberdade de atuação das operadoras. Trata-se da fuga ao Direito para o refúgio no território da lex mercatoria.

E nesse ponto é de frisar, com zelo de joalheiro, que são essas operadoras detentoras — única e exclusivamente — do monopólio e tecnologia do serviço disponibilizado perante o mercado, que as capacita ao inequívoco êxito de sujeitar até mesmo a vontade da pessoa jurídica (estipulante) que a contrata e que tem por dever de solidariedade proteger seus empregados ou associados. Em suma, duas faces da mesma moeda: “A necessidade de contratar leva à impossibilidade de resistir”[1].

Considerando o caráter mais obsequioso da ANS em contratos coletivos, já que pressupõe erroneamente relação de “paridade” entre duas pessoas jurídicas (operadora e estipulante), é que com assombro verifica-se crescente abusividade com ampla reiteração em dias atuais: a resilição unilateral de contratações coletivas pelas operadoras, contando até com apoio de parte de setores jurídicos que emprestam ao fato jurídico interpretação em caráter meramente patrimonialista e econômico.

Aliás, é a norma secundária que abre espaço para essa iniquidade, basta ler que a Resolução 195/2009 da ANS no parágrafo único do artigo 17 permite: “Os contratos de planos privados de assistência à saúde coletivos por adesão ou empresarial somente poderão ser rescindidos imotivadamente após a vigência do período de doze meses e mediante prévia notificação da outra parte com antecedência mínima de sessenta dias”. Parece-nos que contratos de prestação de serviço de saúde — não importam se individuais ou coletivos — devem ser analisados à luz da hermenêutica propositiva voltada aos direitos fundamentais, especialmente a considerar a ampla situação de hipervulnerabilidade do consumidor em comiseração pelas intercorrências negativas no tono vital.

A regra secundária — expedida pela ANS, sem amparo no axioma da dignidade da pessoa humana e, via de consequência, carecendo de adequação à verticalidade constitucional — da maneira como está posta possibilita a extinção de pactuação cujo objeto é caracterizado pela fundamentabilidade (vida, saúde e segurança). Vale lembrar que a resilição unilateral nada mais é que a “denúncia vazia” que põe termo à relação jurídica contratual[2].

Críticas à parte, evidente que dispositivos legais como o mencionado são próprios de Estados policêntricos (caracterizados por crises sistêmicas estruturais e incontáveis centros de gestão), levando o aparato legislativo à ampla incoerência, pois, enquanto a Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor e a Lei 9.656/98 definem fórmulas jurídicas adequadas e dialógicas para a proteção do consumidor, tais “distorções” enfraquecem a construção histórica, cultural e de experiência dos direitos humanos nas relações privadas.

Tenha-se ademais que “denúncia vazia” sempre é recebida com reservas pelo sistema jurídico. O próprio Código Civil (parágrafo único do artigo 473) ao permitir a resilição unilateral lhe impõe limites, permitindo tão somente a produção de efeitos, desde que sejam considerados a natureza do contrato e o vulto do investimento. Ora, não se apresenta honesto raciocinar que enquanto a lei civil coloque a salvo da “denúncia vazia” o patrimônio de um dos pactuantes que depende do contrato recorra aos sistemas de direitos e garantias fundamentais (responsivo)[3], de modo a evitar a abusiva extinção de relação jurídica fundamental sem ao menos a motivação plausível.

Os contratos de prestação de serviços de saúde são situados em relevantes categorizações[4]. Podem ser vistos como: i) contrato cativo ou de extensiva duração (exigente de reciprocidade dinâmica, com ampla proteção das expectativas legítimas espargidas ao longo do relacionamento temporal entre as partes)[5]; ii) contrato relacional (de interação pessoal e com larga duração temporal, qualificado pela colaboração e pela boa-fé, mantendo-se o vínculo mesmo frente a pequenos incumprimentos)[6]; iii) contrato existencial (de atendimento à subsistência humana, cuja prestação de alto conteúdo ético e moral)[7].

Trata-se de contrato cujo objeto é prestação de serviços de natureza fundamental, em que o risco é próprio ao fornecedor; contrato amplamente perfilhado por relações jurídicas reiteradas e solidificadas ao longo do tempo em que a legítima expectativa de renovação ou de manutenção é constante; contrato que celebrado entre duas pessoas jurídicas perfaz efeitos diretos e imediatos em terceiros, pessoas naturais e beneficiárias da prestação de serviço.

Nessas situações, vislumbra-se com acerto as decisões judiciais que definem como abusivas e nulas as cláusulas contratuais que permitem a “denúncia vazia”, mesmo que baseadas em norma secundária da ANS (Resolução 195/2009), isto porque ofensiva à função social do contrato (CC, artigo 421), especialmente em vista do solidarismo contratual[8]. Até porque, a Lei Federal 9.656/98 (artigo 13), ao tratar da extinção contratual, dá ênfase à “rescisão” unilateral por fraude ou inadimplemento, vedando em qualquer hipótese em caso de internação de paciente, nada disciplinando sobre a resilição unilateral nos contratos coletivos.

Contudo, a nulidade também pode derivar do abuso de direito de resilir, verificando o exercício inadmissível de posição jurídica do predisponente contratual (operadoras), que coloca em risco o bem-estar psíquico físico do consumidor, passível de nulidade e de ineficácia ao consumidor, especialmente nas seguintes hipóteses: i) falta de notificação prévia; ii) não observância do prazo estabelecido pela ANS; iii) modificação da condição de saúde do segurado (rebaixamento da qualidade de vida); iv) tratamento em duração, já que o consumidor não “dono” da própria saúde; v) ausência de plano individual, desprovidos de carências e preços similares e; vi) falta de comprovação da modificação da sinistralidade exigente de reajuste da mensalidade e ensejadora da resilição (discussão esta que deve ser deslindada em pleito específico de equilíbrio econômico-financeiro).

De tudo se percebe a necessidade de compreender o contrato de prestação de serviços de saúde em todo seu significado. Seu objeto, embora defina prestação patrimonial não exclui o caráter existencial dos interesses que lhe dizem respeito.


[1] Stiglitz, Rúben y Stiglitz Gabriel, Contratos por Adhesión, Cláusulas Abusivas y Protección al Consumidor. Buenos Aires: Depalma, 1985, p. 6.
[2] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Contrato de Distribuição. Causa Final dos Contratos de Trato Sucessivo. Resilição Unilateral e seu Momento de Eficácia. Interpretação Contratual. Negócio per Relationem e Preço Determinável. Conceito de ‘Compra’ de Contrato e Abuso de Direito. RT. v. 826. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 126.
[3] NONET, Philippe e SELZNICK, Philip. Direito e Sociedade: a Transição ao Sistema Jurídico Responsivo. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 129
[4] MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 5a ed. São Paulo: RT, p. 421 e ss.
[5] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 81.
[6] MacNeil, Ian R. O Novo Contrato Social. Trad. Alvamar de Campos Andrade Lamparelli. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009; Macedo Júnior, Ronaldo Porto. Contratos Relacionais e Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 53.
[7] Azevedo, Antonio Junqueira. Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 185. MARTINS, Fernando Rodrigues; FERREIRA, Keila Pacheco. Contratos Existenciais e Intangibilidade da Pessoa Humana na Órbita Privada: Homenagem ao Pensamento Vivo e Imortal de Antônio Junqueira de Azevedo. In: Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 265.
[8] GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função Social do Contrato: Os Novos Princípios Contratuais. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 177.