Em abril, dois meses depois do início da epidemia de Covid-19 no Brasil, 67.460 pessoas deixaram a saúde suplementar no país. Em maio, outros 216.217 brasileiros interromperam seus planos de saúde. São, em sua maioria, pessoas que perderam seus empregos ou sofreram quedas bruscas nos rendimentos. Agora, contam apenas com o Sistema Único de Saúde para seu atendimento médico e hospitalar. Mantida a tendência de fuga dos planos, o SUS pode ficar sobrecarregado, apontam especialistas.

Caso os dados de junho sigam os de maio e mais 200 mil usuários fiquem sem plano, esse terá sido o pior trimestre da História do país, de acordo com José Cechin, superintendente executivo do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS).

— De fato, estamos numa crise. Isso vem acontecendo de forma importante desde abril e acelerou em maio: 216 mil a menos em um mês só é uma variação importante. Ainda não temos os dados de junho, mas também deve haver perda de beneficiários, porque não houve retomada — afirma Cechin.

Em maio, 37,8 milhões de usuários (80,7% do total) tinham plano coletivo, dos quais 83% eram coletivos empresariais e 16,4%, coletivos por adesão, formados por sindicatos e entidades de classe, por exemplo. O restante são planos individuais.

O superintendente do IESS explica que a migração para o SUS pode não ser total, porque uma parcela, tentando agilizar o tratamento, vai procurar clínicas populares ou consultas particulares. No entanto, isso não é solução para atendimentos de emergência, cirurgias ou exames mais complexos: “Com a saída em massa dos planos, a maioria vai mesmo ter que ir para a fila do SUS e buscar atendimento em UPA”.

— O SUS já atende 160 milhões de pessoas e pode aumentar. Vamos ter uma enxurrada de pessoas que estavam na saúde complementar e vão para o SUS. Essa migração já está ocorrendo por conta da crise econômica — afirma o médico e deputado Hiran Golçalves (PP-RR). — Por isso precisamos, no ministério, de pessoas que conheçam o SUS e entendam de gestão de saúde pública.

O professor do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP Gonzalo Vecina Neto considera que, a depender do cenário econômico e da reposta das operadoras, esse número pode continuar crescendo para até 4 ou 5 milhões de pessoas, especialmente nas regiões Sul e Sudeste, onde se concentram empresas com estrutura de recursos humanos.

— Não tenho dúvidas de que teremos um impacto grande. Mas não tem o que fazer, vai ser assim. As pessoas estão saindo porque não conseguem pagar, a crise pegou todo mundo. Temos que melhorar o SUS, investir. É mais um fator num sistema que está estressado pela epidemia, pelas filas que pararam e não foram atendidas. Vai implicar mais fila e exigir reestruturação.

Para o especialista, o primeiro passo seria reestruturar o sistema de agendamentos e consultas. Isso teria que ser encabeçado por estados e municípios, ao juntar as filas municipais e estaduais e gerenciar o agendamento para reduzir as faltas. As taxas de abstenção a consultas, exames e internações, de acordo com Vecina, chegam a 40%. A confirmação de presença no dia anterior ao atendimento, via SMS ou WhatsApp, poderia ser uma grande ajuda.

Para Lígia Bahia, especialista em saúde pública e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por enquanto o SUS é capaz de absorver os novos usuários. Caso a tendência de migração continue, porém, o sistema todo sentiria o impacto:

— O SUS tem que se preparar. Caso essa tendência se confirme, isso passa a ser um problema porque o sistema não se expandiu durante a pandemia para atender a essas pessoas, não houve esse planejamento — diz ela, que critica a posição das operadoras de planos. — Por que as empresas não diminuíram mensalidades? Nós, pesquisadores em saúde, fizemos um documento propondo que não suspendessem plano de quem ficasse inadimplente na pandemia e que reduzissem as mensalidades, como várias outras atividades fizeram, perdoando pagamento em atraso.

‘Todos têm acesso’

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) afirma, em nota, que “tem discutido e implementado medidas para viabilizar o equilíbrio do setor de forma que todos os atores (beneficiários, prestadores e operadoras) permaneçam no sistema durante a crise causada pela Covid-19. Num momento totalmente atípico como o que estamos vivendo, é essencial o engajamento de todos os segmentos para a mitigação das graves consequências da pandemia, e a reguladora tem envidado todos os esforços nesse sentido”.

Em nota, a diretora executiva da FenaSaúde (entidade que representa as maiores operadoras do setor), Vera Valente, afirma que foi apresentada proposta para ampliar as modalidades de planos, para maior acesso. Com a chegada da pandemia, “voluntariamente, as operadoras suspenderam por três meses todos os reajustes de contratos de planos individuais, coletivos por adesão e empresariais até 29 vidas. Além disso, as operadoras buscam, caso a caso, negociar com os contratantes em situação de adversidade”. Valente diz, no entanto, que “o setor não tem condições de suportar propostas que passem pela anistia à inadimplência”, pois são “responsáveis por cerca de 90% do faturamento dos hospitais privados e 80% das receitas de laboratório de medicina diagnóstica”.

O Ministério da Saúde declarou, em nota, que o “SUS é um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo”, com 160 milhões de brasileiros usando exclusivamente o SUS para ter acesso aos serviços. “Todos têm direito de acesso aos serviços de saúde, independentemente de possuir planos”, diz a nota, “Aqueles que não têm acesso à rede privada poderão recorrer, assim, à rede pública.”