A judicialização da saúde já se tornou uma cultura no país e tem ganhado cada vez mais destaque nos diferentes âmbitos e debates do setor, com impactos desde a esfera pública até a suplementar, passando pelo ambiente acadêmico, empresas, imprensa e diferentes camadas da sociedade. A discussão é sensível e necessária por distintos motivos.

Para se ter uma ideia, levantamento elaborado pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostra que, entre 2008 e 2017, o número de demandas judiciais relativas à saúde registrou aumento de 130%. No mesmo período, o total de processos judiciais no país cresceu 50%.

As demandas são tão diversas quanto o Brasil. Vão desde a falta de um remédio simples em um posto de saúde até a autorização para uma complexa cirurgia fora do país. Diariamente, os magistrados lidam com temas e pedidos diversos, decidindo os rumos da saúde individual e coletiva, com significativo impacto nos setores de saúde, Estado, sociedade e empresas privadas.

Assim, o aumento significativo de ações na Justiça provoca reflexos em todo o segmento. O fenômeno evidencia, ainda, a atuação do Poder Judiciário — muitas vezes com graves desrespeitos aos contratos firmados — trazendo riscos claros à segurança jurídica das instituições de saúde, à sustentabilidade de todo o segmento e à observância ao marco regulatório determinado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Mais do que uma eventualidade, a prática se tornou um hábito. Se, por um lado, o beneficiário aciona a Justiça com a certeza de que sua petição será atendida, de outro, o magistrado — tendo em vista seu poder de decisão sobre a saúde de um indivíduo — inclina-se a impor a obrigação às operadoras, que supostamente têm maior poder econômico, mesmo que não seja sua obrigação contratual arcar com os custos.

O mesmo levantamento do CNJ demonstra que juízes e desembargadores brasileiros continuam a decidir as questões sobre saúde com pouco embasamento técnico-científico, a despeito da criação de mecanismos de qualificação de decisões, como protocolos do Conitec ou os Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário (NAT-Jus) e sua plataforma digital, o E-NatJus.

A publicação mostra que os acórdãos sobre o tema pouco remetem a essas ferramentas, o que evidencia a pouca informação regulatória para justificativa das decisões. Em média, menos de 20% das resoluções analisadas citam, pelo menos, um parecer dos órgãos de apoio técnico. Também é possível identificar diferenças entre as regiões do país. O Sul do Brasil, combinando os Tribunais de Justiça de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, assim como o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, é a região que menos referencia seus entendimentos pelos pareceres técnicos disponíveis.

Outro dado salta aos olhos na mesma pesquisa. No estado de São Paulo, o estudo analisou 107.497 sentenças e detectou que 85% das decisões de primeiro grau são pela procedência total ou parcial dos pedidos, o que confirma a tendência natural dos magistrados em favor do autor da ação, sem considerar os subsídios técnicos das entidades competentes para tratar do assunto.

Diante deste cenário, faz-se necessário uma análise criteriosa das consequências destas decisões para o sistema como um todo. Vale lembrar que o setor é regido por regras fundamentais, como mutualismo, sinistralidade, cobertura dos contratos firmados, pacto intergeracional e outras especificidades. Além disso, a própria regulação cria falhas de mercado, como de assimetria da informação, que também carecem de melhor análise e atualização.

Focando o olhar na saúde suplementar brasileira, é possível perceber que este setor também sofre impactos relevantes com o excesso de ações judiciais, sendo fundamental conhecer o seu histórico normativo e regulatório, para compreender os fatores que contribuem para o surgimento dos conflitos e as suas consequências para o mercado.

Esse esforço demonstra que o excesso de ações judiciais não impacta somente no Judiciário, mas gera entraves para a própria regulação do segmento, seu avanço, sustentabilidade e o acesso desse serviço por parte da sociedade.

Assim, a revisão e análise do impacto regulatório da judicialização da saúde suplementar busca, antes de mais nada, jogar luz para as consequências sociais deste fenômeno. Para tanto, é necessária uma criteriosa investigação das competências do Poder Judiciário e da ANS, como órgão regulados, bem como a harmonização dos interesses envolvidos, sejam eles dos consumidores, dos planos de saúde e demais agentes direto do setor, ou mesmo da justiça.

O marco regulatório da saúde suplementar surgiu em uma década marcada pela desestatização e pelo aumento de investimentos privados em setores de interesse social. Um cenário no qual o Estado não podia mais ser provedor de todos os serviços essenciais para o bem-estar e para a economia do país. Assim, interesses políticos e econômicos convergiram para permitir à iniciativa privada a execução de diversas atividades de interesse social, sob uma espécie de supervisão externa do Estado.

Para os serviços de saúde, a iniciativa privada já atuava antes mesmo da promulgação da Constituição Federal. Em meio às dificuldades encontradas na saúde pública, a atuação das seguradoras de saúde, cooperativas médicas, empresas de medicina de grupo e entidades de autogestão deu seus primeiros passos ainda na década de 1960.

Os sistemas assistenciais acompanharam o desenvolvimento industrial no país com convênios firmados entre empresas empregadoras e empresas médicas, que contavam com rede própria de serviços, estimulando também a organização e o surgimento de novos prestadores de serviços, assim como as redes de medicinas de grupos. É nesse contexto que profissionais médicos começaram a se organizar em diferentes grupos e o conceito evoluiu em todo o país.

Se para as seguradoras, havia o Decreto-Lei 73 de 1966, que estabeleceu as regras de funcionamento do setor de seguros no Brasil, os demais modelos de assistência à saúde ainda eram carentes de regulamentação específica. Embora os contratos daquela época estabelecessem suas próprias normas para o conjunto de procedimentos, coberturas e outras características, a falta de legislação deixava contratantes e contratados em evidente risco jurídico.

É certo que a Constituição Federal de 1988 garantiu, além do direito à saúde de todos os brasileiros por meio das atribuições do Estado, a oferta de serviços de saúde também pela iniciativa privada, sob supervisão estatal. Entretanto, a definição de regras para este segmento só viria com a promulgação da Lei 9.656, em 1998, dez anos depois.

Por sua vez, a Lei 9.961/2000, que criou a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), surgiu da necessidade de um ente dotado de autonomia e capacidade técnica para exercer a atividade regulatória, com competência legal para controlar, fiscalizar e normatizar a conduta dos agentes envolvidos no setor, buscando o equilíbrio do mercado, bem como a proteção da defesa da concorrência, da livre iniciativa e dos interesses dos beneficiários.

Os avanços ao longo do tempo, portanto, são inegáveis. Contudo, a regulação do setor não alcançou a extinção total das falhas do mercado, sobretudo no que se refere à assimetria de informação e à concentração de mercado. Ademais, o aumento da organização da sociedade civil pela defesa de direitos dos consumidores, resultou em significativo crescimento das demandas judiciais.

Aqui, é importante uma ressalva: mesmo que a judicialização seja um “efeito adverso” da regulamentação do segmento, deve-se entender que o processo é reflexo de um mercado bem definido por direitos e obrigações — aspecto positivo de mais transparência e de conscientização dos atores envolvidos. A busca pelos direitos faz parte das relações sociais. Todavia, é importante que o direito individual seja estritamente observado, sem se sobrepor ao coletivo.

Como já dito, as decisões judiciais que versam sobre saúde no âmbito privado revelam um perfil pouco consequencialista dos magistrados, o que evidencia a vontade de se prover aos cidadãos um direito que, muitas vezes, não é plenamente garantido por quem deveria fazê-lo: o Estado.

O ativismo do Judiciário acaba por causar uma instabilidade no ambiente regulado, já que vai de encontro às resoluções da ANS, contribuindo para o desequilíbrio econômico-financeiro e resultando na insegurança jurídica das relações constituídas no setor.

Ora, a regulação da saúde suplementar busca, justamente, o equilíbrio entre as partes envolvidas, conciliando os valores sociais, coletivos e individuais com valores econômicos, por meio de ferramentas técnicas e jurídicas que definem direitos e deveres de beneficiários e das operadoras. Não se pode exigir a garantia da prestação de serviço particular do mesmo modo que se exigiria do poder público.

Isso está na essência do serviço, que se baseia em uma estrutura securitária, com fundamentos atuariais e de mutualidade, onerosidade, solidariedade e aleatoriedade. Nesse segmento, o conceito de solidariedade está intrinsecamente relacionado ao mutualismo, em que as carteiras de clientes se baseiam na contribuição dos diversos beneficiários, que tem suas contraprestações calculadas tendo como base o perfil de utilização, idade (pacto intergeracional), fatores de riscos e frequência de utilização, entre outros.

No que diz respeito à saúde suplementar, os limites da obrigação de prestar assistência à saúde são distintos do ambiente público. Cabe ao poder Judiciário a correta análise para se certificar de que as demandas judiciais não sejam ferramentas de cunho social de obrigação do Estado.

Essa reflexão deve levar em conta que as decisões na Justiça que extinguem, impõem ou relativizam direitos e obrigações dentro de um contrato de plano de saúde, impactam todo o universo de beneficiários vinculados à operadora e traz efeitos ao equilíbrio econômico-financeiro dos contratos. A autorização de um exame, serviço ou medicamento, por exemplo, que não tenha previsão no rol de procedimento da ANS, e tampouco nas cláusulas do contrato, faz com que a operadora inclua o custo de tal cumprimento para todos os beneficiários vinculados naquela carteira de clientes.

O que se vê, todavia, são decisões que não levam em conta como se dará a alocação de recursos para cumprimento daquela obrigação. A consequência: novos direitos e obrigações a respeito de temas que já foram pacificados pelo regulador.

Logo, é forçoso afirmar que a judicialização indiscriminada compromete todo o sistema de saúde no Brasil, não só o setor privado. A permissão do atendimento de demandas individuais não previstas nos contratos viola não somente normas de Direito Civil, como, também, acaba comprometendo a capacidade orçamentária necessária para atender a todo o coletivo.

É claro que o debate com diferentes pontos de vistas e partes interessadas é fundamental e contribui para a evolução do mercado e do alinhamento das expectativas entre contratantes, beneficiários, operadoras, órgão regulador, poderes Judiciário, Executivo e mesmo Legislativo. O que se espera deste debate, porém, é a melhor comunicação entre os diferentes agentes — em especial entre reguladores e julgadores — promovendo mais segurança jurídica e estabilidade econômica às relações envolvidas.

A evolução e as mudanças são inerentes ao mercado da saúde suplementar. Contudo, para que a regulação alcance o equilíbrio e a sustentabilidade do setor, é necessário que os agentes externos, como o poder Judiciário, também atuem na mitigação das falhas do mercado, e não no seu agravamento, com decisões que violam os contratos e os normativos editados pela ANS.