A judicialização na saúde no Brasil se tornou uma prática tão corriqueira que cria efeitos colaterais indesejáveis para todos os participantes do sistema privado, inclusive os próprios beneficiários de planos de saúde. Uma das razões é que, na maioria das vezes, a decisão judicial privilegia o pleito do indivíduo em desacordo aos direitos da coletividade – os planos são regidos no conceito do mutualismo; ou seja, a solidariedade entre pessoas diferentes, mas que têm um interesse em comum: no caso, o acesso a serviços de cuidado à saúde de qualidade.

Posto esse cenário, vale uma ressalva: quando um beneficiário tiver um direito legítimo não atendido, cabe a ele fazer valer, inclusive pela via judicial após esgotar todas as possibilidades de ações junto à operadora. Mas o excesso de processos na Justiça não significa que o atendimento assistencial ofertado pelos planos de saúde é insatisfatório ou deficiente. Muitas vezes, quando um juiz decide favoravelmente ao consumidor, invariavelmente essa decisão ou ignora o que está previsto no contrato assinado entre beneficiário e operadora, ou contraria o que consta do Rol de Procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão regulador do mercado. Em ambas situações quem paga a conta final é o próprio beneficiário de plano privado de assistência, porque os custos judiciais são repassados no cálculo dos reajustes praticados pelas operadoras. O avanço da judicialização da saúde chama a atenção para um desequilíbrio perigoso, a médio prazo, para a viabilidade econômica do segmento.

Em recente estudo realizado pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), a pedido do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), viu-se um pouco da dimensão do excesso de ações judiciais no sistema de saúde público e privado do Brasil. De acordo com o Insper, em uma década (de 2008 a 2017) o número de demandas judiciais relativas à saúde aumentou 130%, enquanto o número total de processos judiciais cresceu 50% no período.

Pois bem, para se ter ideia do que isso representa, segundo o Ministério da Saúde, seus gastos com demandas judiciais somaram mais de R$ 5 bilhões, em um período de oito anos. No sistema de saúde privada, o quadro não é diferente. Basta dizer que o elevado grau de judicialização na saúde suplementar afeta direta e indiretamente 47,3 milhões de beneficiários de planos de saúde, além de toda uma cadeia que engloba operadoras e prestadores de serviços de assistência à saúde.

De acordo com o relatório ‘Justiça em Números 2018’, ano-base 2017, foram classificados 564.090 processos, em todas as instâncias, na categoria de direito do consumidor de planos de saúde – o equivalente a quase 1/3 das ações registradas referentes à judicialização da saúde.

O que vemos, na prática, é que a judicialização leva a decisões que concedem procedimentos não previstos em contratos e que decorrem de demandas muitas vezes equivocadas, causando desorganização no sistema, desequilíbrio orçamentário do setor, além da já mencionada desigualdade de direitos. Em grande monta, a origem dessa crescente demanda judicial na saúde está na falta de informação, tanto por parte do usuário de plano de saúde quanto ao que se refere aos magistrados que julgam os casos. Na mesa das divergências, não é raro situações em que os juízes desconhecem a dinâmica da Saúde Suplementar. Eis o xis da questão, afinal não se pode desprezar as regras estabelecidas pelo órgão regulador, a ANS, nem tão pouco pode-se ignorar as cláusulas dos contratos assinados entre as partes.

Ciente de que a informação correta e transparente pode ajudar a dirimir a cultura do litigioso no país, a Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) iniciou, há anos, ampla campanha de esclarecimento de como funciona a saúde privada e como os benefícios contratados devem ser demandados. Além da participação ativa nos colóquios realizados em várias capitais do país, com a participação dos Procons, de Tribunais de Justiça e representantes de outros órgãos diretamente e indiretamente envolvidos nas questões, a Federação vem distribuindo kits aos tribunais e nas escolas de magistratura com publicações acerca de direitos e deveres dos beneficiários, tipos de cobertura dos planos, Rol de Procedimentos, contratos, entre outros assuntos.

O desconhecimento da Justiça sobre a dinâmica da Saúde Suplementar, inclusive, gera insegurança jurídica para as operadoras. Por isso, a FenaSaúde defende a expansão dos Núcleos de Apoio Técnico ao Judiciário (NAT-Jus) – que visam dar respaldo aos magistrados para melhor embasar a tomada de decisão – e outras iniciativas que tragam conhecimento, baseado em evidências científicas, como os enunciados/recomendações e pareceres. Segundo o CNJ, essa série de instrumentos permite auxiliar os magistrados para que sejam mais rígidos com os critérios probatórios para comprovar a necessidade do fornecimento de remédios, tratamentos, procedimentos, órteses e próteses.

Entretanto, o mesmo estudo do Insper mostra que apenas 20% das decisões sobre saúde citam os protocolos de apoio do CNJ. Ou seja, apesar do aumento de mecanismos técnicos à disposição sobre o setor de saúde, os juízes e desembargadores brasileiros continuam a decidir questões sobre saúde com pouco embasamento técnico.

A Federação e suas associadas entendem que um bom caminho para evitar o crescimento desordenado da judicialização na saúde passa pelo estímulo ao uso dessas ferramentas pelo Poder Judiciário; ampliação do acesso a informações sobre as regras que norteiam a atividade de gestão de planos de saúde; e pela conscientização de todos os atores do sistema, do paciente aos profissionais e magistrados, sobre a utilização mais adequada dos meios jurídicos.

Nesse sentido, é importante destacar todo trabalho que vem sendo feito pelas operadoras, como a qualificação de pessoal, produção de vídeos, anúncios explicativos para a sociedade, e oferta de canais de comunicação com o consumidor, como SACs, Ouvidorias, sites e guias com esclarecimentos etc. Já se percebe que muitas dúvidas acabam sanadas após o consumidor buscar os canais gratuitos de atendimento, o que evita, em último caso, a judicialização. Essa postura ativa das operadoras já traz relevantes resultados. De acordo com levantamento feito pela FenaSaúde, a partir de dados de canais oficiais de atendimento ao cidadão, comprova-se a redução do número de reclamações dos beneficiários de planos de saúde nos últimos anos.

Segundo os dados de 2018 do Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor (Sindec) – órgão da Secretaria Nacional do Consumidor, ligado ao Ministério da Justiça, que reúne os Procons de todo o país –, o segmento aparece, atualmente, na 16º posição entre os 20 listados, com apenas 1,28% do total de reclamações ou 28.023 queixas. Em 2015, por exemplo, os planos de saúde estavam no 14º lugar, com 42.080 reclamações, o equivalente a 1,66% do total.

A FenaSaúde entende, portanto, que a Justiça não seja o melhor caminho para resolver questões ligadas à Saúde Suplementar, que funciona sob regras rígidas de conduta e governança. A melhor via para esclarecer dúvidas é sempre o diálogo, cujos canais já foram abertos pelas operadoras – cada vez mais atentas às demandas do consumidor. É preciso intensificar o método de resolução de conflitos e instaurar, de forma definitiva, a cultura do diálogo.