Gerou importante repercussão o recente trabalho divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), produzido pelo Insper, que aponta que a judicialização da saúde cresceu 130% nos 10 anos compreendidos entre 2008 e 2017, mais de duas vezes e meia o crescimento proporcional de todas as ações do País, no mesmo período (alta de 50%).  Os dados, por si, são superlativos, mas, também, têm razoável potencial para interpretações questionáveis. O que parece não ter margem para questionamento é o fato de ser quase impossível prover previsibilidade de planejamento e operação a qualquer atividade econômica que sofra um volume dessa magnitude de ações judiciais.

Segundo o estudo, foram 498,7 mil processos envolvendo o sistema de saúde (público e privado) de primeira instância e 277,4 mil na segunda instância. Os principais assuntos discutidos nos processos em primeira instância são “Plano de Saúde” (34,05%), “Seguro” (23,77%), “Saúde” (13,23%) e “Tratamento Médico-Hospitalar e/ou Fornecimento de Medicamentos” (8,76%). O documento descreve que a incidência elevada de assuntos como “Plano de Saúde” e “Seguro” mostra a relevância das ações judiciais na esfera da saúde suplementar. Ainda nesse setor, segundo o referido trabalho, a incidência maior envolveria questões como dietas, insumos ou materiais, leitos e procedimentos. Porém, o caso de maior relevância é o que engloba órteses e próteses, citados em mais de 108 mil decisões de tutela antecipada em uma amostra de 188 mil. O valor unitário de órteses e próteses e o caráter de urgência muitas vezes associado à sua utilização é uma provável explicação, de acordo com os responsáveis pelo trabalho, para justificar a elevada participação nas decisões de tutela antecipada.

Acrescentaríamos, nessa dimensão, considerar se efetivamente cada pleito de urgência e emergência efetivamente está devidamente enquadrado nesse perfil de demanda. Afinal, é de conhecimento público que existem muitos casos em que são requeridos urgência e emergência em tratamentos eletivos, mas que poderiam ser ambulatoriais e necessitariam de mais profunda investigação terapêutica.

O acesso à Justiça constitui um princípio irrevogável a qualquer sociedade democrática. Mas, é preciso refletir quando deixa de ser um preceito de justiça e equidade e se transforma em instrumento de força a desequilibrar toda uma estrutura social, no caso, a saúde, de forma geral, e a saúde suplementar, especificamente. É necessário que todos os envolvidos nessa cadeia produtiva busquem meios de ordenar o volume de judicialização na saúde.

Pode-se, inclusive, buscar inspiração na reforma trabalhista. Até a promulgação das novas regras, o Brasil detinha a maior incidência mundial desse tipo de litígio. Após a reforma, iniciada em novembro de 2017, as ações trabalhistas caíram 34% em 2018 em relação ao ano anterior, segundo levantamento realizado pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST). Entre janeiro e dezembro de 2018, as varas de primeira instância receberam 1,72 milhão de reclamações trabalhistas, ante 2,63 milhões no mesmo período do ano anterior.

No caso da saúde suplementar, há que se considerar o princípio do mutualismo. Demandas individuais não previstas nos contratos e tampouco contempladas pela legislação em vigor, quando atendidas, mesmo que em caráter temporário, comprometem a capacidade orçamentária necessária para atender o coletivo.

Um exemplo dos problemas detectados pelo trabalho do CNJ é a determinação de fornecimento de medicamentos sem o registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ou prescritos para fim não descrito em bula, o chamado uso off-label. O fato de ter sido reconhecido por autoridade sanitária do País de origem do fármaco não atesta a sua segurança para uso em outros territórios ou para diferentes patologias, o que pode gerar graves consequências e efeitos colaterais para paciente, saúde coletiva e o sistema como um todo.  Portanto, junto com a prescrição, caberia a exigência de pareceres técnicos e comprobatórios de efetiva resolubilidade da patologia a partir do uso do medicamento requerido, inclusive, por meio de pareceres independentes de segunda opinião médica.

Há outros exemplos de grande impacto sistêmico. Conduzido recentemente pela PricewaterhouseCoopers (PwC) em conjunto com o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), o estudo “Arcabouço normativo para prevenção e combate à fraude na saúde suplementar no Brasil” traz um amplo panorama de práticas abusivas no setor e apresenta um conjunto de ações necessárias para sua prevenção. A publicação menciona, a título de exemplo, um esquema desmantelado pela Polícia Federal que envolvia fornecedores de materiais, médicos e advogados, no âmbito do uso de órteses, próteses e materiais especiais sem a real necessidade de realização das cirurgias – expondo pacientes a riscos gravíssimos – e toda uma cadeia de aplicação de sobrepreços, incorrendo em fraudes e agressões ao sistema de saúde. Esse é um exemplo que potencialmente pode incorrer em estímulo à judicialização e precisa ser considerado.

O IESS também desenvolveu, desta vez em parceira com o Insper, um estudo mapeando o funcionamento da Saúde Suplementar e suas principais falhas de mercado para propor políticas com foco em mitigar tais problemas. Entre as sugestões apresentadas estão o aperfeiçoamento do arcabouço regulatório, modernização de modelos de pagamento, melhorias na transparência e outras questões. Outro trabalho que desenvolvemos com a Tendências Consultoria, liderado pelo economista e ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega, também apresenta soluções e ajustes para a melhoria da eficiência e da competição no setor. A publicação mostra, por exemplo, como a estruturação da cadeia de saúde é comprometida com a intervenção regulatória. Impacto semelhante ao gerado pelo excesso de intervenção do Poder Judiciário sem o devido amparo técnico-científico para a tomada de decisão.

Claro, não cabe ao magistrado ser uma Wikipédia da saúde e entender questões que os médicos estudam a vida inteira para assimilar. Mas, a atuação dos Núcleos de Apoio Técnico (NAT-JUS), como demonstramos durante o seminário Decisões na Saúde que o IESS realizou em dezembro do ano passado, podem, sim, ser um importante elemento de apoio à decisão.

Espera-se, portanto, que estudos como o que produzimos ou como este recém-publicado pelo CNJ/Insper auxiliem na conscientização da necessidade de busca por racionalidade e respeito às regras e contratos que envolvem a saúde no País. Nesse sentido, além de reforçar a importância dos NAT-JUS, corroboramos a recomendação do estudo de criação de varas especializadas e de incentivos para resoluções extrajudiciais, como a mediação.

Há meios para melhorar o acesso da saúde e o relacionamento com o Poder Judiciário, buscando mais equilíbrio e previsibilidade ao sistema de saúde suplementar.