Caminhando para completar a maioridade, a Lei 9.656/98, conhecida como lei dos planos de saúde, ainda aguarda uma importante definição da Justiça. Trata-se da definição acerca da situação jurídica daqueles que ainda mantêm contratos antigos, assim entendidos aqueles contratos firmados com as operadoras antes da vigência da lei.

Sabe-se que a lei em questão constituiu, sem dúvida, um grande divisor de águas no mercado de saúde suplementar. Após a sua entrada em vigor, passou-se a exigir das cooperativas, seguradoras, medicina de grupos e autogestões adequação a exigências legais que conduziram a uma mudança significativa de atitude delas perante os consumidores, principalmente no que tange à reformulação dos contratos e ao dever obrigacional de informação. Trata-se de clara temática de Direito do Consumidor[1] e seus conflitos necessariamente atingem o Judiciário.

Com efeito, a expressão “judicialização da saúde” reflete o momento atual da política sanitária, pública ou privada, no país. No que concerne à saúde privada, representada pela relação consumidor-operadora de plano de saúde, apesar da quase maioridade da lei, remanescem conflitos, em número considerável[2] a ponto de merecer especial atenção dos estudiosos do Direito do Consumidor no país.

Um dos mais importantes conflitos ainda remanescentes reside precisamente na questão da situação jurídica do contrato celebrado antes da edição da Lei 9.656/98. Em jogo, a dúvida de saber se a esses consumidores restaria assegurada a cobertura mínima estabelecida pela agência reguladora do setor, a ANS, a partir do mandamento legal[3]. Para alguns magistrados, tratar-se-ia, sempre, de ato jurídico perfeito, inatingível pelo referido diploma legal. A análise de eventual demanda judicial ficaria, assim, restrita ao conteúdo do contrato, cabendo apenas discutir a existência ou não de uma cláusula abusiva nos termos do Código de Defesa do Consumidor[4]. Outros juízes entendem tratar-se de um pacto que se renova anualmente, podendo se valer da retroatividade da lei nova para todos os casos que essa regulamentou, tais como cobertura assistencial e reajuste da mensalidade, não ficando adstrita a análise judicial somente às cláusulas nele constantes[5].

O tema encontra-se posto no STF sob o regime da repercussão geral (artigo 1.036, CPC). Trata-se do RE n. 948.634, Relatora a Ministra Cármen Lúcia. O julgamento do referido recurso servirá de base para o julgamento de centenas de outros casos sobrestados. O mérito do processo discute a obrigatoriedade de cobertura de stent[6] para consumidor que possui contrato antigo.

Passados mais de 17 anos da lei e quase oito anos do reconhecimento da repercussão geral sobre a matéria da irretroatividade ou não da Lei 9.656/98 sob os contratos antigos, o processo teve andamento, podendo entrar na pauta para votação a qualquer momento. Em jogo, a questão da (ir)retroatividade das leis e o Direito do Consumidor a uma prestação de saúde digna[7].

O tema é relevantíssimo e interessa diretamente a mais de cinco milhões de consumidores, que permanecem com os ditos “contratos antigos”[8]. Interessa, principalmente, a todos nós, estudiosos do Direito do Consumidor, considerando os nobres valores em questão.


[1] Súmula 469 do STJ: “Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde”.
[2]http://www.cnj.jus.br/images/programas/forumdasaude/demandasnostribunais.forumSaude.pdf. Relatório do Conselho Nacional de Justiça – total de ações sobre a saúde pública e privada – 392.921 – dados de junho de 2014.
[3] Conhecido como “Rol de Procedimentos” editado, a cada dois anos, pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
[4] Nesse sentido ver o AgRg no Recurso Especial 1.260.121-SP (2011-0102588-1), relator ministro Paulo de Tarso Sanseverino, que traduz o entendimento da corte superior.
[5] O Tribunal de Justiça de São Paulo editou a Súmula 100: “O contrato de plano/seguro saúde submete-se aos ditames do Código de Defesa do Consumidor e da Lei n. 9.656/98 ainda que a avença tenha sido celebrada antes da vigência desses diplomas legais”.
[6] De acordo com a definição do Conselho Federal de Medicina (CFM), PC/CFM/Nº 18/99, “stent é um tipo de prótese utilizado no intuito de auxiliar uma função natural”.
[7] José Joaquim Gomes Canotilho entende que “retroactividade consiste basicamente numa ficção: (1) decretar a validade e vigência de uma norma a partir de um marco temporal (data) anterior à data da sua entrada em vigor; (2) ligar os efeitos jurídicos de uma norma a situações de facto existentes antes de sua entrada em vigor. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2003. p. 261-262.
[8] http://www.ans.gov.br/perfil-do-setor/dados-gerais. De acordo com a ANS em março de 2016, o número total de beneficiários é de 5.172.168 em plano antigo.