“Eu acuso! Meu dever é de falar, não quero ser cúmplice. Minhas noites seriam atormentadas pelo espectro do inocente que paga por um crime que não cometeu.”

O trecho, extraído da célebre carta “J’Accuse”, escrita em 1898 por Émile Zola ao então presidente francês Félix Faure, denunciando irregularidades na Justiça Militar daquele país, ilustra o ímpeto com que o Brasil deve encarar a questão da máfia da judicialização da saúde, que vem trazendo grandes lucros a fabricantes de materiais médicohospitalares e a seus parceiros às custas da saúde e boa-fé de pacientes em todo território nacional.

São esquemas em que profissionais da saúde, advogados e fabricantes de materiais médico-hospitalares mancomunam-se para incentivar o cidadão comum a buscar benefícios indevidos na Justiça.

O uso desse expediente jurídico é generalizado —visa desde o acesso a itens banais, como achocolatados diet e papéis higiênicos, até a procedimentos não previstos no rol da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) ou medicamentos caríssimos que nem sequer são legalizados no país.

Esse mal, além de sangrar o orçamento para o atendimento na rede pública, também põe em cheque a saúde suplementar.

Os casos, infelizmente, estão espalhados por todo o país, até mesmo em instituições reconhecidas, como o Hospital das Clínicas e o Albert Einstein.

No Distrito Federal, a Operação Mr. Hyde revelou recentemente um conluio envolvendo médicos, enfermeiros, diretores de hospitais e empresários para a realização de cirurgias desnecessárias que chegavam a mutilar pacientes utilizando materiais de baixa qualidade.

É necessário combater o problema por diversos motivos. O primeiro é óbvio: evitar que o Judiciário seja usado para a obtenção de vantagens indevidas.

O segundo diz respeito à ameaça que tais procedimentos constituem à integridade física e emocional de pacientes que, sem saber, tomam parte em negociatas que podem até mesmo levar à morte.

O terceiro motivo é o impacto financeiro e social dessa corrupção, uma vez que milhões são desviados de investimentos em atendimentos básicos de muitos para privilegiar o tratamento em caráter excepcional de poucos que têm condições de pagar um advogado.

Antes de mais nada, o sistema de remuneração da saúde deve evoluir do atual “fee for service” —pagamentos variáveis conforme o número de procedimentos e produtos utilizados por médicos e demais profissionais da saúde— para o padrão DRG, que privilegia a criação de pacotes de serviços e produtos hospitalares com base em dados coletados a partir da internação de pacientes.

São muitas as vantagens desse paradigma, como a redução dos riscos de máfias se articularem por meio do uso de recursos finitos de maneira irresponsável e a possibilidade de comparar a assistência realizada por diferentes prestadores e a padronização dos tratamentos.

É ainda desejável discutir regras mais rígidas em relação à venda de materiais médico-hospitalares.

Atualmente, nos EUA, a Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde) está processando alguns dos maiores fabricantes mundiais desses produtos, cujas filiais comprovadamente tomam parte em negociações de superfaturamento e uso desnecessário desses itens.

A ideia é exigir, pelas regras de compliance americanas, uma atitude mais transparente dessas organizações. No final, o recado é simples e claro: não há e nunca haverá preço que cubra a saúde e o bem-estar da população; portanto, qualquer esquema corrupto deverá ser combatido.