Como é calculado o valor de uma conta de hospital? A resposta é, na aparência, simples: no Brasil, por exemplo, vigora o que os economistas da saúde chamam de pagamento por serviço. Cada novo exame, dose de medicamento ou mililitro de oxigênio consumido pelo paciente durante sua passagem pelo hospital é adicionado à fatura. A simplicidade é somente aparente porque, na maioria dos casos, não cabe ao paciente definir quais serviços hospitalares ele vai usar – e quais vão engrossar a conta paga. A decisão é exclusividade do médico. Se imprevistos ou erros ocorrem durante o tratamento, ou se um exame é pedido sem necessidade, a conta aumenta.
 
Esse modelo de contas abertas é criticado por governos, planos de saúde e pacientes privados porque, em teoria, ele estimula o desperdício. Como o hospital ganha a cada item usado, não se preocupa em racionalizar os pedidos de exames ou o emprego de materiais. E as contas sobem. Países no mundo inteiro discutem maneiras de mudar essa forma de remuneração. Em 2010, quando promulgou a Lei de Cuidados Acessíveis (o Affordable Care Act, ou Obamacare), o governo Obama assumiu, como uma de suas bandeiras, encontrar formas mais eficientes de remunerar serviços hospitalares.
 
A ideia era incorporar às contas de hospitais medidores de qualidade e pagar mais àqueles estabelecimentos com melhores resultados. Dá-se a isso o nome de “pagamento por performance”. Ou “cuidados em saúde baseados em valor”. Nos Estados Unidos, é comum que o hospital receba um valor fixo por cada tratamento, negociado com os planos de saúde. A proposta do governo – que foi posta em prática em alguns hospitais – era pagar mais àqueles hospitais cujos pacientes não sofressem com efeitos adversos derivados do tratamento ou que tivessem baixos índices de mortalidade e infecção hospitalar. Entre outras 20 variáveis.
 
Em 2013, o governo americano implantou um desses programas de pagamento por performance em 3.500 hospitais de cuidados intensivos vinculados ao Medicare, o sistema de seguros de saúde voltado para idosos e administrado pelo governo. A expectativa era que essa mudança no modelo de remuneração estimulasse melhores práticas e garantisse mais saúde para os pacientes.
 
Nos últimos quatro anos, uma equipe da Universidade de Michiganacompanhou as estatísticas desses hospitais para colocar os resultados do programa à prova. As conclusões do grupo foram publicadas no início de julho no periódico científico The New England Journal of Medicine. O trabalho leva a crer que, apesar das boas intenções, esses novos modelos de remuneração trazem pouco (ou nenhum) benefício para a saúde dos pacientes.
 
Por que mudar a conta do hospital
 
Os americanos estão entre aqueles que mais gastam com saúde em todo o mundo. Por ano, são cerca de US$ 9.400 por habitante, segundo dados de 2014 da Organização Mundial da Saúde (OMS). É um gasto muito superior à média dos países da OCDE, o grupo que reúne nações desenvolvidas, como o Reino Unido e o Canadá – e que investiu US$ 4.700 por habitante em 2014. O valor americano impressiona ainda por outras duas razões: apesar do gasto elevado, os indicadores de saúde dos Estados Unidos são piores do que aqueles de países que gastam menos. A expectativa de vida do americano médio, por exemplo, de 78 anos, é inferior aos 81 dos canadenses e ingleses. E o gasto americano aumenta, ano a ano. Desde 1994, cresceu 148% – em relação à média de 125% dos países da OCDE.
 
Talvez por isso os americanos tenham encabeçado a discussão sobre como reformular as contas de hospital. Por lá, a ideia é antiga: a discussão ganhou corpo ainda nos anos 1960: “Naquela época, os valores pagos aos hospitais subiam muito rapidamente”, diz Maria de Fátima Siliansky, professora de economia política da saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
 
A primeira tentativa de racionalizar a questão veio com a criação dosGrupos de Diagnóstico Relacionados (ou DRG, na sigla em inglês), em 1984. Os DRG fixaram valores para o tratamento de determinadas enfermidades. Esses valores variam conforme a idade e as condições de saúde do paciente: tratar a pneumonia de uma pessoa de 80 anos é diferente de tratar a mesma condição em alguém com 20.
 
Em teoria, os DRG poderiam conter a escalada no valor das contas. Não era mais do interesse dos hospitais pedir exames evitáveis, já que isso não teria peso no valor final pago pelos pacientes e planos de saúde. Não foi o que aconteceu: “Os gastos continuaram a crescer”, diz Maria de Fátima.
 
Uma nova proposta para o problema foi formalizada em 2006. Naquele ano, os professores Michael Porter e Elizabeth Teisberg, da Escola de Negócios de Harvard e da Escola de Medicina da Faculdade Dartmouth, publicaram o livro Redefinindo os cuidados de saúde: como criar competitividade baseada em valores e resultados. No trabalho, os dois professores argumentavam que, da maneira como o setor de saúde estava organizado nos Estados Unidos, ganhavam melhor aqueles prestadores de serviços que tinham boas habilidades de negociação – e conseguiam cobrar bons preços aos planos de saúde. Era uma inversão – deveriam ser mais competitivos aqueles hospitais e médicos capazes de oferecer cuidados melhores.
 
O livro de Porter e Teisberg punha por escrito uma ideia que já era praticada, desde fins dos anos 1990, em países europeus. A Suécia foi pioneira ao implantar algo parecido em 1998. Outros países do mundo desenvolvido seguiram o exemplo. Mas, de maneira geral, as experiências são ainda incipientes. De acordo com a consultoria Economist Intelligence Unit, um dos braços da revista britânica The Economist, somente a Suécia tem adesão “muito alta” aos princípios dos cuidados de saúde baseados em valor. No Reino Unido, a adesão é “alta”. A consultoria chegou a essa conclusão depois de analisar os sistemas de saúde de 25 países em diferentes estágios de desenvolvimento econômico. Concluiu que, no geral, o alinhamento aos princípios dos cuidados baseados em valor cai à medida que cai o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de um país – provavelmente porque aumenta a variedade de problemas com que esse país tem de lidar. Na América Latina, segundo a consultoria, somente a Colômbia apresenta índice “moderado” de adesão. No Brasil, a adesão é baixa.
 
Como funciona no Brasil
 
Por aqui, essa discussão se materializa numa virtual queda de braço entre hospitais e operadoras de planos de saúde. Além de cobrar por cada serviço prestado, os hospitais brasileiros também atuam como espécies de revendedores de material hospitalar – as operadoras e pacientes privados não pagam por esses itens o mesmo preço pago pelo hospital ao comprá-los: “Eles cobram uma taxa sobre o valor do material”, afirma Maria de Fátima, da UFRJ. Para os planos de saúde, a prática é escandalosa: “É o mesmo que entregar um cheque em branco para uma pessoa e soltá-la num shopping”, diz Pedro Ramos, diretor da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge). Por isso, hospitais e planos mantêm uma relação de conflito. Maria de Fátima conta que os grandes planos de saúde, costumeiramente, têm também setores de auditoria anabolizados – destinados a analisar, e contestar, cada cobrança de serviço hospitalar. “Para o consumidor individual, o problema é ainda maior”, diz Maria de Fátima. “Ele não tem como questionar essa conta.”
 
Há discussões sobre como mudar as bases dessa relação. No final de 2016, a Abramge anunciou a intenção de começar um projeto-piloto, em parceria com alguns hospitais particulares, para testar um novo modelo de remuneração. A ideia era, à moda dos americanos, criar Grupos de Diagnóstico Relacionados. E estabelecer incentivos financeiros, para pagar melhor àquelas instituições que mantivessem sadios os pacientes com doenças crônicas ou que apresentassem menores taxas de reinternação. Mas o plano-piloto não foi adiante: “A criação dos Grupos de Diagnóstico seria uma mudança muito drástica aqui”, diz Ramos. “Já entendemos que vamos ter de criar um modelo tropical.”
 
A novidade, no entanto, não seria assim tão grande. No país, já existe algo semelhante aos grupos de diagnósticos, mas em vigor na relação entre o SUS e os hospitais privados que lhe prestam serviços. Em lugar de pagar por serviços prestados, o governo paga valores acordados para o tratamento de cada enfermidade. O sistema é menos complexo que o dos Grupos de Diagnóstico porque a remuneração não leva em conta variáveis como a idade do paciente ou sua condição de saúde antes de ingressar no hospital. Também não considera indicadores de qualidade do atendimento.
 
Hoje, a Abramge diz que discute com a Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp) uma alternativa ao pagamento por serviços. “Há ideias, mas ainda muito embrionárias”, afirma Ramos. “Falamos sobre um modelo para os próximos anos.”
 
A questão também é debatida por um grupo técnico da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o órgão regulador do setor no país. O fórum reúne operadoras de planos de saúde e hospitais, mas não há a expectativa de que as soluções ali propostas reflitam imediatamente no setor. Por nota, a ANS afirmou que já existem, no país, experiências localizadas de remuneração alternativa ao pagamento por serviço e que a mudança para outros modelos deve acontecer “paulatinamente”: “O objetivo da ANS é trazer o assunto para discussão e ter a participação da sociedade e de órgãos de defesa do consumidor nesse processo”, afirma a agência.
 
Além da indefinição de um modelo, a adoção do pagamento por performance no Brasil esbarra na falta de informação sobre a qualidade dos hospitais. Nos Estados Unidos, os indicadores sobre cada serviço prestado são compilados e ficam à disposição de pacientes, planos de saúde e governo. No Brasil, não há nada parecido: “O governo até conhece os indicadores dos hospitais que prestam serviço para o SUS”, diz Maria de Fátima. “Mas são informações parciais: valem somente para os atendimentos via SUS. Não compreendem o hospital inteiro.”
 
O que a ciência diz
 
Apesar das grandes expectativas em relação aos cuidados de saúde baseados em valor, há poucas evidências de que sua adoção garanta melhores resultados para a saúde dos pacientes. Era isso o que o time da Universidade de Michigan, liderado pelo professor Andrew Ryan, queria avaliar. Por quatro anos, a equipe observou qual o desfecho clínico dos pacientes admitidos com pneumonia, infarto agudo do miocárdio e falência cardíaca em 3.500 hospitais de cuidados intensivos vinculados ao Medicare e remunerados por performance. As taxas de mortalidade desses pacientes depois do tratamento foram comparadas àquelas de pessoas internadas em hospitais de porte semelhante, mas que não faziam parte de nenhum programa desse gênero. Os pesquisadores também compararam estatísticas a respeito da satisfação dos pacientes com o atendimento. O resultado: os dois tipos de hospital progrediram, quanto a esses indicadores, nos quatro anos de estudo. E de forma equivalente. A maior diferença entre os grupos foi verificada na comparação entre pacientes admitidos com pneumonia – a mortalidade foi 0,43% menor entre aqueles tratados em instituições pagas por performance.
 
Ryan não é o primeiro a se desapontar com os resultados do pagamento por performance. Além de pagar mais a quem trabalha melhor, essa abordagem também preconiza não pagar por procedimentos que tratam problemas evitáveis provocados pelos hospitais. A prática é adotada pelo Medicare, desde 2008, em alguns hospitais americanos. Em 2012, uma equipe da Universidade Harvard examinou quais os resultados dessa política. Constatou que, nos hospitais em que foi adotada, ela não foi eficiente para diminuir as taxas de infecções hospitalares consideradas evitáveis. Na verdade, segundo o estudo, a incidência desses problemas já diminuía antes da implantação do novo sistema de pagamento – e a redução continuou em ritmo similar.
 
E, em março deste ano, a consultoria Rand – um grupo americano especializado na avaliação de políticas públicas – publicou uma revisão sistemática sobre o tema. Os pesquisadores analisaram 69 trabalhos, que tentavam entender o potencial do pagamento por performance para melhorar a saúde dos pacientes. Concluíram que não há evidências de que a estratégia melhore os indicadores de saúde.
 
Isso significa que o pagamento por performance é ruim?
 
Não exatamente. Segundo a Organização Mundial da Saúde, que analisou modelos baseados nesses princípios em países de renda alta e média, ainda é difícil dizer se o pagamento por performance foi superestimado ou se, mais provavelmente, essa equação – que busca aliar contas justas a bons cuidados de saúde – é mais complexa e ainda requer ajustes.
 
É essa também a conclusão do trabalho de Ryan e seus colegas, da Universidade de Michigan. Depois de reconhecer que o novo modelo não trouxe melhores resultados para os pacientes em hospitais de cuidado intensivo, o grupo sugeriu que as instituições continuassem a experimentar abordagens novas, orientadas pelo mesmo princípio.
 
Continuar a testar abordagens é importante para descobrir quais correções podem ser feitas. Alguns autores sugerem que é preciso repensar os estímulos oferecidos aos médicos propriamente, e não somente à instituições onde eles trabalham. Em 2016, o professor Aaron Caroll, da Universidade de Indiana, publicou um artigo no jornal The New York Times argumentando que mudar a forma como os médicos trabalham – e garantir que isso tenha impacto na vida dos doentes – é difícil. Sua afirmação era baseada em uma revisão de estudos, publicada em 2011, que avaliou sete trabalhos – e concluiu que essas estratégias econômicas interferiam pouco ou nada no trabalho dos médicos da atenção básica (aquela voltada para prevenir doenças ou evitar que casos crônicos se agravem) e na saúde de seus pacientes: “Idealmente, um médico não trabalha somente pelo dinheiro”, diz Maria de Fátima, da UFRJ. “Os médicos trabalham em ambientes institucionais e são sensíveis aos valores desses ambientes. Se a organização valorizar o bem-estar do paciente, é possível que o médico se motive a fazer o mesmo. Mas não há evidências de que esse bem-estar melhore se o incentivo for meramente econômico.”