A iniciativa de incluir a velhice na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), mantida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), vem provocando forte reação de setores ligados ao envelhecimento, preocupados com o risco de se mascararem problemas de saúde reais para a terceira idade, aumentar o preconceito contra idosos e interferir no tratamento e na pesquisa de problemas de saúde e na coleta de dados epidemiológicos.

A CID existe desde 1900 e vigora em sua décima edição, mas a CID 11 já foi elaborada e está em fase de ajustes. É nela que entrará o código MG2A, que se refere à velhice. A nova versão passa a valer em janeiro, com prazo de três anos para ser implementada.

Espécie de guia de linguagem médica, com detalhamento de doenças, sintomas e condições, a CID é usada para classificar as causas de internação de pacientes e de morte nos atestados de óbito. Para os especialistas, a inclusão equivale a classificar oficialmente velhice como doença.

O epidemiologista Alexandre Kalache, do Centro Internacional de Longevidade, e também presidente da Aliança Global de Centros Internacionais da Longevidade, tem usado sua rede de contatos para barrar a iniciativa. A Federação Internacional do Envelhecimento (IFA), a Associação Internacional de Gerontologia e Geriatria e a HelpAge International também questionam a OMS sobre o assunto.

O presidente da Academia Nacional de Medicina, Rubens Belfort, aponta possíveis complicadores na vida de pessoas com mais de 60 anos, como o cálculo do valor de um seguro de vida:

— Esse novo código é simplista e só atrapalha. Se vai fazer seguro de vida e tem 66 anos, perguntarão se tem doença, e sim, terá: velhice. E o paciente que morre poderá receber o diagnóstico de… “velhice”. A gestão da saúde pública precisa de informação detalhada sobre causa de morte e doenças existentes.

O líder da equipe de classificação de terminologias e padrões da OMS, Robert Jakob, afirma que a inclusão de velhice no documento não significa torná-la uma doença e sim uma condição. Ele classifica a discussão como um “profundo mal-entendido”.

— O rótulo “velhice” substitui “senilidade”, usado na CID-10. A decisão resultou de discussões que apontavam para a conotação cada vez mais negativa de “senilidade” nos últimos 30 anos — diz Jakob.

Kalache diz que o termo escolhido é pior que o anterior:

— Trocaram um termo mal definido por outro ainda mais criticável, pois velhice contempla apenas a idade cronológica e não um processo de declínio e fragilidade.

No Brasil, cerca de três quartos das mortes ocorrem a partir dos 60 anos, por doenças cardiovasculares, oncológicas, neurológicas, entre outras. E, se tudo for resumido à velhice, argumentam os especialistas, há riscos de faltarem informação e investimento específicos para o tratamento dessas doenças.

Quem é velho?

O país está envelhecendo rapidamente, com 32 milhões de idosos hoje e previsão de 67 milhões em 30 anos. Mas apenas 15 das mais de 200 escolas médicas do país contam com a disciplina de geriatria.

Se velhice for considerada doença, outra questão se impõe: quem é velho? A CID não especifica idade, e o conceito de idoso varia. No Brasil, oficialmente e para fins estatísticos, idoso é quem tem mais de 60 anos. Na Itália, 75.

Kalache destaca que não há um único biomarcador capaz de definir a categoria etária de uma pessoa. Dados sobre tireoide, colesterol e glicemia podem estar associados ao envelhecimento, mas não determinam quem é idoso.

A médica Martha Oliveira, ex-diretora da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e CEO da Laços Saúde, focada em envelhecimento, diz que eventuais alterações em planos de saúde ainda estão muito distantes, pois dependem de uma série de regulamentações e entraves burocráticos. Mas ela diz que classificar velhice como doença reforça o ageísmo, a discriminação de pessoas pela idade.

— Envelhecimento é uma conquista. Envelhecer é um processo natural da vida e (a mobilização dos médicos foi potencializada) em um ano marcado pelo preconceito contra o idoso por conta da Covid-19. Essa proposta é o resgate do preconceito — afirma Oliveira.

Aos 63 anos, a comerciante Heloísa Camello é o oposto de uma pessoa doente. Exames recentes de rotina mostraram que era tão saudável que seu plano de saúde lhe ofereceu um desconto de 10%.

Ela pratica atividade física, faz trabalhos como modelo e, após se separar na pandemia, já tem planos para um novo casamento:

— Estou no mercado de trabalho, jogo bola com meu neto, caminho na orla, tomo meu vinho, sou feliz. Se alguém colocar velhice no meu prontuário, é por preguiça.

O médico Gustavo Gusso, que tem doutorado sobre a CID, explica que as mudanças na classificação são feitas, em geral, a partir de pedidos de especialistas ou após pesquisas bancadas por setores específicos.

— A nova CID é o reflexo de um mercado em que as doenças são percebidas como produtos. Estar na CID não forçará ninguém a colocar em documentos que a idade é uma doença, mas é um instrumento que pode ser muito mal usado — afirma.

Kalache diz que a discussão também interessa à indústria farmacêutica. Quanto mais doenças e mortes forem classificadas dessa maneira, argumenta, maior o investimento na busca de “curas para velhice”:

— Em 2014, a indústria de antiaging movimentou US$ 34 bilhões só nos EUA. Há vários interesses em jogo.

O presidente do Sindusfarma, Nelson Mussolini, afirmou em nota que “a indústria farmacêutica está comprometida com a qualidade de vida de pessoas de todas as idades, desenvolvendo e lançando medicamentos para o tratamento das mais variadas enfermidades” e que “o foco permanente é o de pesquisar e oferecer produtos essenciais para a qualidade de vida das pessoas, dos recém-nascidos aos centenários”.