“Não há como alegar ausência de cobertura para o procedimento médico solicitado, pois foi recomendado pelo profissional da saúde que assiste à autora em seu tratamento para enfrentar a letalidade da possível patologia enfrentada”. Assim justificou o juiz André Diegues da Silva Ferreira, da 3ª Vara do Juizado Especial Cível de Santos, a decisão de condenar uma companhia seguradora por se recusar a custear integralmente cirurgia para extrair tumor de câncer de pele de uma conveniada.

Apesar do convênio médico, a paciente precisou desembolsar a quantia de R$ 6,7 mil para ser submetida a cirurgia micrográfica de Mohs — técnica mais refinada, precisa e efetiva para o tratamento dos tipos mais frequentes de câncer da pele, sendo recomendada por especialista da própria companhia seguradora, que reembolsou a paciente em apenas R$ 2 mil, com a alegação de que o procedimento não consta do rol da Agência Nacional de Saúde (ANS).

Representada pela advogada Bruna Bellante Real, a moradora de Santos acionou o plano de saúde na Justiça, pleiteando o ressarcimento da diferença (R$ 4,7 mil) do custo da cirurgia e mais uma quantia a título de dano moral. Além de citar que o procedimento realizado pela conveniada não integra o rol da ANS, a empresa alegou inexistir disposição contratual para o tipo de cirurgia realizado pela paciente, rechaçando a ocorrência de danos morais indenizáveis.

“A requerida tem o dever de providenciar o atendimento recomendado pelos médicos que avaliaram a demandante, custeando os seus gastos de forma integral, mostrando-se imprópria a sua recusa”, salientou o juiz. Quanto ao pedido de dano moral, o juiz também o reconheceu procedente e fixou a indenização em R$ 5 mil. Para o magistrado, esse valor se mostra “razoável”, porque não gera enriquecimento sem causa à requerente e nem é ínfimo ao ponto de ser indiferente à capacidade econômica do ofensor.

No caso concreto, conforme a sentença, a recusa de cobertura por parte do convênio médico ultrapassa a esfera do mero dissabor, impondo à autora “sentimento de humilhação e de impotência, ofendendo gravemente sua integridade psíquica”. Segundo o julgador, em situações desse tipo, o paciente já se encontra fragilizado e, muitas vezes, desesperado e deprimido, sendo-lhe imposto sofrimento desnecessário e cruel. A empresa interpôs recurso ao colégio recursal, que ainda será apreciado.

Princípio da boa-fé
A decisão da 3ª Vara do JEC se fundamentou no Código Civil (CC), no Código de Defesa do Consumidor (CDC) e em súmula do Superior Tribunal de Justiça, mas enfatizou a prevalência do princípio da boa-fé. “Respeitado o princípio do pacta sunt servanda (os pactos devem ser cumpridos ou o contrato se faz lei entre as partes), não há que se deixar de lado a boa-fé objetiva, a qual deve direcionar os contratantes, pós e pré-contrato, bem como em todo o decorrer da relação contratual”.

A inobservância dessa boa-fé objetiva, de acordo com o magistrado, seria ignorar a natureza e o fim social do contrato. Como consequência, o convênio médico perderia a sua razão de ser, que é a saúde do consumidor, “portanto, sua vida, tendo em vista que este bem jurídico é o mais relevante do ordenamento jurídico pátrio”. O juiz acrescentou que o plano, ao aceitar a incumbência de cuidar de vidas, deve proporcionar o necessário para o paciente atingir a cura ou ter amenizado o seu quadro clínico.

A Súmula 469 do STJ reconhece a aplicação do CDC aos contratos de plano de saúde. O artigo 423 do CC dispõe que, “quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente”. O CDC, em seu artigo 14, prevê como regra a responsabilidade objetiva dos fornecedores, bastando para o seu reconhecimento a demonstração da ocorrência de fato, do dano e do nexo causal entre ambos.

“Disso resulta que, ainda que exista cláusula contratual com previsão de exclusão de cobertura para certos procedimentos ou medicamentos, esta deve ser interpretada, se dúbia, em favor do hipossuficiente e, se abusiva, considerada nula. Compete ao médico responsável pelo paciente avaliar a necessidade do tratamento, procedimento e/ou exame, do contrário, estaria se negando a própria finalidade do contrato, que é assegurar a continuidade da vida e da saúde”, concluiu o magistrado.

STJ e o rol da ANS
A 2ª Seção do STJ julga recursos para definir a extensão da cobertura dos planos de saúde. A discussão está centrada no rol de procedimentos da ANS. O julgamento teve início em setembro de 2021, quando o relator, ministro Luis Felipe Salomão, votou pela taxatividade da lista da agência de saúde. No último dia 23 de fevereiro, a ministra Nancy Andrighi considerou o rol exemplificativo, ou seja, não precisa ser seguido à risca. Ainda nessa data, o julgamento foi suspenso porque o ministro Villas Bôas Cueva pediu vista.