Disposições que colocam o consumidor e beneficiário de plano de saúde em nítida relação de desequilíbrio violam os deveres de cuidado e lealdade impostos pelo princípio da boa-fé objetiva. A partir dessa premissa, o juiz Thiago Gonçalves Alvarez, da 3ª Vara Cível de São Vicente, julgou procedente ação de dano moral ajuizada pelos pais de uma menina e condenou a operadora Unimed de Santos a indenizá-los em R$ 100 mil.

A criança morreu enquanto aguardava vaga em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) pediátrica. Portadora de doença congênita, a menina nasceu em 29 de maio de 2020. Com carência de 180 dias para realização de exames de alta complexidade, internações e outros procedimentos específicos, o contrato de convênio médico da criança foi celebrado em 28 de agosto daquele ano. Para atendimento de urgência e emergência, a carência contratual era de 24 horas. Segundo os pais, a filha passou mal no último dia 3 de fevereiro, sendo levada a um hospital da rede credenciada do plano.

Porém, a consulta foi negada sob a justificativa de que ainda não havia expirado a carência de 180 dias. Sem atendimento no hospital credenciado, a menina foi levada para outro, público, sendo transferida para um terceiro, o Hospital Municipal de São Vicente. Nessa unidade, ela foi diagnosticada com broncopneumonia aspirativa e cardiopatia congênita, mantida em sala de emergência com suporte clínico intensivo.

Enquanto aguardava vaga em UTI pediátrica, a criança teve o quadro clínico agravado e morreu. O óbito ocorreu em 7 de fevereiro, a 20 dias do fim da carência. Os pais alegaram que a filha necessitava de atendimento de urgência e emergência, cuja carência é de 24 horas. Para o juiz, a situação vai além de prazos. Segundo ele, os contratos de adesão de planos de saúde são “fruto do fenômeno da massificação das relações de consumo”, devido a cláusulas predeterminadas e padronizadas impostas pelo parceiro contratual economicamente mais forte, que põem em risco o equilíbrio entre as partes.

A Unimed Santos negou a ocorrência do dano moral e sustentou a aplicação dos termos do contrato celebrado, porque o acordo estaria em conformidade com o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e os pais da menina poderiam ter optado por outro tipo de cobertura, sem carência.

Ainda conforme a operadora, a paciente recebeu no Hospital Municipal de São Vicente — que não é da rede credenciada — todo o tratamento necessário, com utilização dos mesmos equipamentos para suporte clínico intensivo.

Os argumentos da Unimed não foram aceitos pelo juiz. “Conforme se observa do mesmo relatório médico, a transferência de L. para a rede pública de saúde deu-se, na verdade, em razão da impossibilidade de seu encaminhamento para hospital da rede credenciada da ré, à luz da efetiva negativa de cobertura pela operadora do plano de saúde, sob o fundamento de que a beneficiária ainda se encontrava em cumprimento do prazo de carência estabelecido na avença”.

Duas súmulas do Superior Tribunal de Justiça foram mencionadas pelo magistrado. Uma delas, a 302, diz que “é abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado”. A outra é a 597: “a cláusula contratual de plano de saúde que prevê carência para utilização dos serviços de assistência médica nas situações de emergência ou de urgência é considerada abusiva, se ultrapassado o prazo máximo de 24 horas contado da data da contratação”.

Perda de uma chance
Além de reconhecer abusividade nas cláusulas contratuais, Alvarez buscou na teoria da perda de uma chance (la perte d’une chance) amparo para responsabilizar a operadora de saúde. Ele observou que a impossibilidade de rápido encaminhamento da criança — ainda no dia 4 de fevereiro — para UTI pediátrica da rede credenciada contribuiu para agravar o quadro clínico e impedir o adequado e eficiente tratamento da vítima, privando-a de uma possibilidade, probabilidade ou mesmo esperança de cura.

“Não havia como negar a cobertura pretendida para o adequado tratamento e segurança contra os riscos envolvendo a saúde da beneficiária do plano, que se encontrava, como já se disse, em situação de emergência. A cobertura era mesmo de rigor e a demandada deve, agora, arcar com as consequências de sua postura omissiva. A perda prematura de filho, talvez a maior das dores suportadas por pais, gera inegável dano moral”, sentenciou Alvarez. O juiz fixou a indenização no mesmo valor pleiteado pelos autores. Cabe recurso.