Um dos pontos que mais causam debate no mercado de planos de saúde de saúde suplementar é a necessidade de respeito ao equilíbrio econômico-financeiro em suas relações contratuais. Todavia, o judiciário tem se revelado pródigo em violar o equilíbrio econômico-financeiro, outorgando aos beneficiários dos planos de saúde uma série de procedimentos fora das coberturas médicas contratuais. Para se analisar a questão, com a complexidade que o mesmo envolve, mister se faz entender toda a sistemática e a natureza tanto do contrato, quanto da empresa de saúde suplementar.

Inicialmente, há que se ter em mente que a empresa, ou operadora, de saúde suplementar não se trata de uma mera prestadora de serviço. Portanto, o contrato, ou produto, de saúde suplementar, igualmente, não é um ajuste de prestação de serviços ordinária. Observe-se que há todo um conjunto econômico-normativo que imprimi características peculiares ao mercado de saúde suplementar e seus respectivos institutos de direito, garantindo-lhes uma função social única.

A função social do contrato se trata de instituto jurídico que garante a sociabilidade nos negócios jurídicos travados na sociedade. Assim, por meio de uma série de imposições legais, evita-se que uma parte experimente prejuízo em face de outrem, quando da contratação para fins de celebração de negócio jurídico, isto é, de relação obrigacional que visa à circulação de bens na sociedade.

Observe-se que a finalidade maior da circulação de riquezas é permitir seu acesso a uma parcela cada vez maior da população. Para tanto, as relações jurídicas são instrumentalizadas por meio de contratos, que devem primar por seu equilíbrio econômico-financeiro, evitando-se que uma parte se locuplete indevidamente em detrimento ou causando prejuízos a outrem. Assim, para evitar que a circulação de riquezas redunde em empobrecimento para uma das partes envoltas, o direito garante sua isonomia econômica por meio de normas cogentes.

Para que se entenda a função social de determinado tipo contratual, mister se faz analisar sua natureza jurídico-econômica. É de conhecimento basilar que, diversamente do que ocorre com os contratos de previdência privada que se arrimam na capitalização – que é uma operação financeira em que poupadores efetuam pagamentos periódicos (em geral mensais) a uma instituição, recebendo, ao fim de certo prazo (em geral vários anos), a importância capitalizada –, o contrato de planos de saúde se fundamenta no sistema de repartição simples ou mutualismo.

O sistema de repartição simples se baseia na reunião de um grande número de indivíduos expostos aos mesmos riscos possibilitando estabelecer o equilíbrio aproximado entre as prestações dos consumidores e as contraprestações das operadoras de planos de saúde. Assim, ocorrendo um sinistro, este é absorvido pela massa de consumidores.

A lógica do sistema não é uma opção da operadora, mas uma exigência de funcionamento do próprio segmento econômico. Se ao revés da repartição simples adotássemos o sistema de capitalização, os consumidores de planos de saúde, quando da ocorrência do sinistro, somente poderiam gastar o que tivessem individualmente poupado, fato que por si só já se evidencia absurdo.

Considerando que o contrato de saúde suplementar tem por natureza o sistema de repartição simples, no qual o custo do atendimento de um de seus beneficiários é repartido com todos os integrantes da respectiva carteira de clientes, chega-se à ilação de que o contrato tem por objeto principal garantir o atendimento do respectivo usuário, no caso de eventual sinistralidade.

Assim, em que pese ser um instrumento de Direito privado, sua característica essencial é assegurar o atendimento e a qualidade da assistência à saúde à toda a coletividade que o atende, o que torna inexorável a observância de sua função social.

Ressalte-se, por oportuno, que o contrato de plano privado de assistência à saúde tem sua definição legal positivada no art. 1º, inc. I, da Lei n. 9.656, de 1998, que o caracteriza como a:

(…) prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós-estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor.

A exegese do texto legal acima transcrito, conforme interpretação sistemática e teleológica com as demais disposições da referida norma, nos remete que a função social do contrato de plano de assistência à saúde é garantir ao beneficiário, o qual contribui periodicamente para a formação e manutenção de um fundo pecuniário do plano, o direito ao atendimento médico, nos casos de sinistralidade contratualmente coberta, assegurando, ainda, que o custo financeiro pelo procedimento prestado corra às expensas da respectiva operadora, a qual administra o referido fundo para tanto.

Destarte, depreende-se que a função social do contrato de plano privado de assistência à saúde passou a ser devidamente garantida, consoante lição doutrinária retro, por uma norma cogente de ordem pública, inafastável pela manifestação volitiva inter pars, que incide sobre a relação jurídica contratual, a saber, a Lei n. 9.656, de 1998, que, entre diversos institutos jurídicos, garante ao usuário do respectivo plano:

  • plano-referência – consubstanciando-se no princípio da dignidade da pessoa humana e da defesa do consumidor, significa garantia ao mínimo existencial e ao acesso simétrico do mercado, que nada mais se trata do que um rol de procedimentos médicos que todos os contratos devem ofertar e cobrir para todos os seus beneficiários (arts. 10, 10-A, 11 e 12);
  • garantia de atendimento, mesmo em casos de inadimplência contratual (art. 13, parágrafo único, inc. II);
  • vedação à exclusão de cobertura a doenças e lesões preexistentes (art. 11 e parágrafo único);
  • períodos máximos de carência legalmente prefixados (art. 12, inc. V);
  • vedação à recontagem de carência, suspensão de atendimento e rescisão unilateral de contrato (art. 13, parágrafo único);
  • isonomia de tratamento entre os diversos consumidores, vedando-se, expressamente, qualquer discriminação em razão de idade ou deficiência física (art. 14);
  • regulamentação e normatização da variação da contraprestação pecuniária em razão de faixa etária (art. 15);
  • rol obrigatório de cláusulas contratuais claras e obrigatórias (art. 16);
  • vedação à redução do porte de atendimento da rede médica hospitalar credenciada sem prévia autorização do Poder Público (art. 17);
  • disciplinamento da prestação entre a rede médica credenciada e os consumidores (art. 18);
  • garantia de internação hospitalar em acomodações superiores às contratualmente cobertas, no caso de indisponibilidade destas (art. 33);
  • exclusividade de realização de objeto social na área de saúde suplementar (art. 34);
  • garantia de cobertura obrigatória nos casos de atendimentos urgenciais ou emergenciais (art. 35-C).

Uma das maiores conquistas com a regulação do mercado de saúde suplementar foi a padronização do rol de procedimentos médicos e eventos em saúde, a cargo da Agência Nacional de Saúde Suplementar, conforme art. 10, § 4º, da Lei nº 9.656, de 1998, a seguir transcrito:

Art. 10. (…).

§4º A amplitude das coberturas, inclusive de transplantes e de procedimentos de alta complexidade, será definida por normas editadas pela ANS. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001)

Trata-se de uma técnica de complementação normativa da atividade de deslegalização, em caráter técnico, da Agência Nacional de Saúde Suplementar, no qual o ente regulador estabelece quais são os procedimentos médicos e eventos de saúde que serão contratualmente cobertos pelas operadoras de saúde suplementar.

Sua finalidade maior é garantir a segurança jurídica. Isto porque, em caráter temporal, assegura previsibilidade nas relações contratuais estabelecidas, uma vez que, ao dar conhecimento prévio aos beneficiários de planos de saúde sobre o rol de procedimentos médicos e eventos de saúde, lhes dá a possibilidade de fazer um planejamento a médio e longo prazo sobre os cuidados assistenciais que poderão desfrutar.

Sob aspectos econômico-financeiros, a competência normativa do ente regulador para o estabelecimento do rol de procedimentos e eventos tem relevância impar no que se refere à regulação do mercado de saúde suplementar. Isto porque, o mercado de saúde possui uma característica peculiar no que se refere ao avanço tecnológico. Diferentemente do que acontece em outros mercados, na área de saúde o aprimoramento tecnológico, ao invés de tornar mais barato o acesso à bens, produtos e serviços, facilitando a circulação de rendas e riquezas, torna-o mais caro. Em outras palavras, quanto mais se aprimora os procedimentos de saúde, deixando-os menos danosos à incolumidade física dos beneficiários, os mesmos se tornam mais caros e menos acessíveis. Assim, inexoravelmente, se a ANS permitir a incorporação ampla e irrestrita de todo avanço tecnológico, por mais benéfico que, aparentemente, possa parecer, seu efeito inexorável será o aumento dos custos nas atividades de saúde suplementar com o repasse dos custos na contraprestação pecuniária mensalmente paga pelos beneficiários, por ocasião do reajuste linear anual.

Em que pese toda a preocupação e responsabilidade do ente regulador com o equilíbrio econômico-financeiro nas relações contratuais do mercado de saúde suplementar, dado o notório conhecimento técnico e especialização da ANS, o mesmo não acontece quando da judicialização de diversas questões de planos de saúde.

Adotando uma linha de raciocínio indo por um viés muito mais consumerista, mas sem nenhuma preocupação com o equilíbrio econômico-financeiro, tampouco com as consequências macroeconômicas de se majorar o custo da atividade de saúde suplementar, sem nenhum critério de impactos nas relações continuadas.

Neste sentido, cita-se, exemplificativamente, os seguintes precedentes da Corte Superior de Justiça:

“(…) 2. Nos termos da jurisprudência desta Corte, a ausência de determinado procedimento médico no rol da ANS não afasta o dever de cobertura por parte do plano de saúde, quando necessário ao tratamento de enfermidade objeto de cobertura pelo contrato. Precedentes. 3. Agravo interno desprovido. (STJ; AgInt no REsp 1789835 / DF; Relator(a): Ministro MARCO BUZZI; QUARTA TURMA; Data do Julgamento: 23/04/2019; Data da Publicação/Fonte: DJe 26/04/2019).

“(…) 3. Por ser o rol da ANS exemplificativo, a ausência de previsão de procedimento médico específico não afasta o dever de cobertura. (…)” (STJ; AgInt no AREsp 1405622 / SP; Relator(a): Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA; QUARTA TURMA; Data do Julgamento: 08/04/2019; Data da Publicação/Fonte: DJe 16/04/2019).

Da análise do entendimento dominante da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, resta claro que a autoridade técnica do ente regulador não é judicialmente respeitada. Todavia, do exame dos julgados, não há, por parte da justiça, uma preocupação em se garantir o equilíbrio econômico-financeiro da relação jurídico-contratual no mercado de saúde suplementar, tampouco há a aplicação das regras cogentes do art. 21 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, a seguir transcrito:

Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.

Observe-se que nos casos acima citados, a Corte Superior de Justiça invalida ato normativo federal e cláusula contratual, a saber, resolução normativa da Agência Nacional de Saúde Suplementar, para estender procedimento médico fora do rol contratualmente previsto. Assim, em se considerando que a sistemática econômico-financeira que envolve o cálculo da contraprestação pecuniária é baseada nos de procedimentos médicos colocados à disposição do usuário e no potencial de utilização dos mesmos, tendo por base fatores pessoais de risco, a extensão de um procedimento fora dos limites contratuais representa fator externo de desequilíbrio, a saber, falha de mercado denominada de externalidade. Além disso, ao se violar o equilíbrio econômico-financeiro e, inexoravelmente, diminuir a margem de previsibilidade de resultados projetados das operadoras de planos de saúde, estas repassarão o prejuízo à toda coletividade de beneficiários, por ocasião do reajuste linear anual, fazendo com que todo o mercado e os consumidores arquem com os custos da externalidade judicial.

Assim, há que se esclarecer o judiciário que justiça social não se faz com violação da autoridade técnica do ente regulador, desrespeito a cláusulas contratuais, tampouco com inobservância do art. 21 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. As decisões que reconhecem benefícios médicos não previstos no rol de procedimentos médicos da ANS representam falha de mercado (externalidade judicial), fator de desequilíbrio econômico-financeiro que, a médio e longo prazo, representará alta geral de preços na contraprestação pecuniária mensal, barreira de entrada a novos beneficiários, bem como fator de risco de permanência aos consumidores já participantes do mercado