Nos últimos dois anos, dois milhões de pessoas perderam seus planos de saúde, aquelas que ainda têm convênio médico pagam reajustes cada vez mais salgados e há uma grande demanda por planos individuais que não é atendida por falta de oferta. É nesse cenário que tramita um projeto de lei na Câmara dos Deputados propondo mudanças nas regras desse mercado que faturou R$ 178,4 bilhões no ano passado, sustentado por 47,4 milhões de usuários.

Segundo especialistas ouvidos pelo Valor, o projeto tem pontos positivos, mas eles observam que é necessário aprofundar o debate, com estudos para medir o impacto de algumas medidas propostas e trazer à discussão a importância de programas de prevenção e novos modelos de remuneração entre operadoras e hospitais.

Dentre os pontos considerados importantes, o projeto prevê que as operadoras ofereçam obrigatoriamente planos individuais, reabrindo uma discussão antiga sobre um problema sério, até agora sem solução.

Outro ponto, igualmente relevante, refere-se aos planos das pessoas com mais de 59 anos de idade. Hoje, há 6,3 milhões de usuários de planos nessa faixa etária. O projeto defende que o valor do reajuste desses convênios seja parcelado em cinco vezes (com correção pelo IPCA), a cada cinco anos, e não de uma só vez, aos 59 anos, como ocorre atualmente. Em média, a mensalidade nessa faixa etária sofre um aumento de 49%, uma vez que o Estatuto do Idoso não permite reajustes após os 60 anos. Assim, uma pessoa com um plano de R$ 1 mil, por exemplo, poderia parcelar o aumento de 49%, equivalente a R$ 490 em cinco vezes. Com isso, haveria um acréscimo de R$ 98 (mais o IPCA), a cada cinco anos, além do reajuste anual baseado na taxa de sinistralidade, que mede quanto o usuário usa o plano de saúde.

Maurício Ceschin, um dos maiores especialistas em saúde do país, tendo presidido a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o Hospital Sírio Libanês e a Qualicorp, vê com bons olhos o parcelamento: “A medida é vantajosa para o consumidor. O reajuste único aos 59 anos precifica o plano de saúde para os próximos 20 anos”.

O Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa, ligado à Secretaria de Direitos Humanos, defende que o assunto seja mais debatido. Sua posição inicial, de ser contra o parcelamento, deveu-se à falta de discussão com a sociedade. “Precisamos entender melhor quais os impactos, os custos que teremos com essa mudança. Hoje, já temos a conquista do Estatuto do Idoso que proíbe o reajuste após os 60 anos”, diz Ana Lúcia da Silva, coordenadora do Conselho.

Os que defendem o parcelamento alegam que o consumidor pagaria menos e que não faz sentido arcar com um reajuste para um período indeterminado, uma vez que não há como saber quantos anos o usuário vai viver. A própria Fenasaúde, entidade que reúne as seguradoras de saúde, diz que a medida beneficia o consumidor, apesar de trazer prejuízo às empresa. “Vejo a possibilidade de parcelar o reajuste por 20 anos como um ganho para o consumidor”, diz Solange Beatriz Palheiro Mendes, presidente da Fenasaúde.

O Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) é contra o parcelamento porque, em sua visão, fere o Estatuto do Idoso. Este ponto tem suscitado tanta polêmica que há risco de sair do projeto de lei (ver acima). As atenções devem voltar-se, então, à questão do plano individual, escasso no mercado.

Há 9,2 milhões de planos individuais no país, o que representa cerca de 20% dos 47,4 milhões de convênios em vigência. Seguradoras como Bradesco Saúde e Sul América e várias outras operadoras não têm mais em seu portfólio planos de saúde para a pessoa física. Entre as grandes empresas, quem oferta o produto é a Hapvida, as Unimeds e a Amil, que voltou a ter esse plano em outubro nas cidades de São Paulo e Guarulhos.

O principal argumento do setor para não vender plano individual é que esse tipo de plano é reajustado por índice definido pela ANS e o percentual é inferior ao que as operadoras aplicam a planos corporativos. Se a obrigatoriedade do individual for aprovada, há risco de operadoras e seguradoras de saúde passarem a oferecer um plano individual a preços altos, tornando-o inacessível a boa parte da população. A ANS não tem o poder de definir o preço inicial, apenas os reajustes das mensalidades.

“A medida [de obrigar a vender plano individual] é inócua porque o governo só regula o reajuste e não o preço. O plano de saúde popular, por sua vez, tem um preço estabelecido, mas pode sofrer uma avalanche de ações judiciais pedindo maior cobertura”, diz Ceschin. Um plano individual popular não daria acesso a tratamentos mais avançados, mas há o risco de o usuário entrar na Justiça, pedindo o tratamento.

O Idec observa que o projeto de lei não garante que o plano individual será vendido a preços acessíveis. “É uma possibilidade, sim, o produto ser oferecido com preço elevado para compensar os custos e o reajuste que é controlado pela ANS”, diz a presidente da Fenasaúde.

Neste ano, o reajuste do plano individual ficou em 13,55%. O plano corporativo subiu, em média, 19%; o plano por adesão (usuários reunidos em uma entidade de classe), 22%; e os planos vendidos a pequenas e médias empresas, 14,7%.

Reinaldo Scheibe, presidente da Abramge, associação que reúne as operadoras de planos de saúde, diz que é contra a obrigatoriedade do plano individual e o parcelamento, mas vê como positivas as propostas de contratação de um auditor independente para analisar as contas das operadoras e incentivos para quem adota ações de prevenção.

“O que me preocupa é a falta de uma discussão mais aprofundada sobre a saúde privada e pública do país”, diz Scheibe. “O projeto não entra no debate de como evitar os custos elevados, nem tampouco trata do modelo de saúde [atual], que está ultrapassado”, observa Ceschin.

Para Paulo Furquim, coordenador do Centro de Estudos em Negócios do Insper, o projeto de lei “traz mais pontos positivos do que negativos”, ainda que alguns desse pontos precisem de um estudo mais aprofundado ou “ataquem mais a consequências dos erros do que os próprios erros”.

Entre os aspectos considerados positivos por ele, estão os artigos que fortalecem a portabilidade do usuário. Se aprovadas, essas alterações permitirão, por exemplo, que o usuário mude de operadora sem que precise passar por um novo período de carência. “Isso é um motor importante de empoderamento do consumidor porque restringe o espaço para que as operadoras cometam abusos. Quando o usuário se sente lesado, ele muda de plano”, diz Furquim.

Outro artigo visto por Furquim como positivo é o que acelera a substituição, dentro da rede conveniada, de um hospital com serviços considerados insatisfatórios por outro de nível equivalente ou superior. “É importante que o plano de saúde possa substituir o hospital. Se esse hospital está muito ruim ou caro, a troca premia o concorrente que consegue reduzir custos ou aumentar a qualidade dos serviços”, afirma.

Como Ceschin e Scheibe, Furquim observa que os altos custos, decorrentes de um modelo distorcido, são ponto essencial do debate, mas não são contemplados no projeto de lei. Países como Suécia e Inglaterra usam ampla base de dados que permitem que hospitais e médicos saibam qual será o custo de determinado procedimento. Isso evita gastos desnecessários ou artificialmente inflados. No Brasil, diz Furquim, “o sistema está tão distorcido que hospitais e médicos inflam custos porque o plano acaba pagando o que é pedido”.

Os altos custos, diz Furquim, devem tornar “inócua” a medida que propõe escalonamento dos reajustes aos idosos. Para ele, o maior problema é que não há estudos que quantifiquem de maneira mais precisa quantas e quais pessoas serão prejudicadas ou beneficiadas pela medida.

Ana Candida Sammarco, advogada do escritório Mattos Filho, prevê encarecimento dos convênios para os mais jovens. “O mote das mudanças propostas – melhorar a regulamentação e ampliar o acesso da população ao sistema de saúde – é muito positivo, mas o projeto é falho em alguns pontos e não atinge as expectativas. Ele acaba sendo inócuo”, diz.