O sistema de saúde no Brasil vive um paradoxo. Enquanto milhões de brasileiros sofrem com a falta de médicos, leitos e medicamentos nos hospitais, o setor desperdiça uma quantia bilionária com procedimentos malfeitos, exames desnecessários, erros médicos e ambulatoriais, excesso de consumo de materiais e fraudes. Em 2017, essa conta chegou a R$ 100 bilhões, 20% dos R$ 500 bilhões gastos pelos setores público e privado. E, segundo dados da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), de 2% a 3% desses recursos foram desviados em esquemas de corrupção.

Os números consideram os gastos do setor público — nas esferas federal, estadual e municipal —, do setor privado e também aquilo que os brasileiros desembolsam com planos de saúde, clínicas particulares e remédios. Os dados são resultados de correlações de estudos feitos em universidades dos Estados Unidos e outras compilações de pesquisas do setor.

O presidente da Anahp, Francisco Balestrin, explica que a perda de recursos é classificada em três níveis: clínico, operacional e gestão. “O desperdício clínico tem a ver com diagnósticos mal feitos, pacientes que não recebem tratamento correto, antibióticos inadequados e mais exames do que precisam. Os operacionais são oriundos de má gestão. Em vez de o exame ser feito na hora, atrasa quatro horas, com isso, desperdiça-se tempo. O centro cirúrgico precisa ser limpo e liberado para outro atendimento, esse tempo pode ser de 30 minutos ou 1h30. O de gestão diz respeito, principalmente, ao sistema de cobrança lento. O hospital leva entre 60 e 90 dias para receber e ainda usa papel, o sistema não é informatizado”, detalha.

A explicação para a quantidade de erros em procedimentos médicos está na má qualidade da formação dos profissionais, não apenas de saúde, mas de todos os envolvidos no processo, de acordo com Balestrin. “A gente tem que formar melhor médicos, enfermeiras e gestores. A formação dos profissionais da saúde é focada no apoio ao diagnóstico, relega o atendimento individual e pede mais exames”, afirma. A má formação também é foco de questionamento no Ministério da Saúde, que, conforme antecipou o Correio ontem, pretende congelar a abertura de novas vagas em universidades de medicina para investir na qualidade.

Embora o desperdício passe a ideia de abundância, esse não é o caso. O Brasil gasta com saúde, por pessoa, anualmente, US$ 1 mil, sendo US$ 550 no setor privado e US$ 450 no público. Nos Estados Unidos, os desembolsos chegam a US$ 9 mil e, na Europa, a US$ 10 mil. A falta de um sistema interado e informatizado é responsável pela repetição dos exames. Os hospitais ainda utilizam papéis e isso dificulta o acesso ao histórico dos pacientes. Se uma pessoa faz um exame em Brasília e viaja a outro estado, caso precise de atendimento médico, um novo exame será solicitado.

Para o presidente da Federação Nacional dos Médicos, Jorge S. Darze, a falta de dinheiro produz um serviço ineficiente e incapaz de atender a população. “O que vejo é uma carência grande de tudo. Um dos grandes problemas é o financiamento. É preciso estabelecer parâmetros de recursos. Os investimentos estão aquém da realidade. O sistema de saúde não acompanha o crescimento da população e das doenças. Ao contrário, houve encolhimento de mais de 20 mil leitos no Brasil na última década”, critica.

Informatização

Em nota, o Ministério da Saúde informa que tem priorizado a informatização do sistema e a economia estimada é de R$ 22 bilhões. “Até o fim de 2018, as 41 mil Unidades Básicas de Saúde devem estar informatizadas — hoje já são mais de 18,5 mil e com prontuário eletrônico do paciente. Com a iniciativa, todos os dados de atendimento do paciente, como prescrição de medicamentos, exames e consultas ficarão registrados nacionalmente e poderão ser consultados em qualquer unidade de saúde do país”, afirma em trecho do documento.

De acordo com a pasta, em 2017, a União destinou R$ 126,9 bilhões para a saúde. A gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) é compartilhada com estados e municípios, responsáveis pela execução dos serviços, por complementar o financiamento e pela organização da rede de assistência. Pela Constituição Federal, os estados e o Distrito Federal devem investir o mínimo de 12% da receita própria, enquanto os municípios devem aplicar, pelo menos, 15%. A lei, no entanto, nem sempre é seguida. O Rio de Janeiro, por exemplo, destinou apenas 10% do orçamento para a saúde em 2016. O governador Luiz Fernando Pezão justificou o descumprimento por causa da crise econômica que atinge o estado e da falta de repasses federais.

Recursos pelo ralo da corrupção

Um dos principais desperdícios da saúde é a quantidade de exames realizados e a campeã é a saúde suplementar, que envolve os planos de saúde. As taxas de utilização de tomografia computadorizada, 146,8 por mil beneficários, e de ressonância nuclear magnética (147,1) superam as médias de utilização dos países-membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que são 144,1 e 67 por mil beneficiários, respectivamente, segundo dados da Federação Nacional de Saúde Complementar (FenaSaúde).

Além de caros, esses procedimentos representam riscos para a saúde. A exposição à radiação da tomografia pode provocar câncer. “Tratamentos mais caros são indicados quando um mais simples daria uma assistência melhor. Órteses e próteses são utilizadas excessivamente e o preço praticado é ‘de acordo com o freguês’, por falta de regulação. É preciso transparência nos processos. A regulação assimétrica regula a ponta, os planos de saúde, mas não estende aos demais elos da cadeia, de médicos a fornecedores”, aponta o superintendente de regulação da FenaSaúde, Sandro Leal.

Existem ainda as fraudes como emissão de notas falsas, simulação de atendimentos e prescrição de tratamentos que são até mesmo contraindicados pelos conselhos profissionais, além da postergação de alta hospitalar para garantir o leito. “A lógica econômica que persiste no setor é perversa, remunera o desperdício, o gasto desnecessário. A grande mudança tem que passar a remunerar a qualidade do serviço médico e não o volume”, completa Leal. Segundo ele, nos últimos 10 anos, a conta dos planos de saúde fechou no vermelho em seis.

O Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS) estima que, em 2016, as fraudes custaram R$ 14 bilhões em contas hospitalares e R$ 11 bilhões em relação aos exames. O Ministério Público Federal e a Receita Federal estimam que um esquema de fraude em compras de próteses e equipamentos médicos pela Secretaria de Estado do Rio de Janeiro e pelo Instituto Nacional de Traumatologia (Into) provocou desvio de, ao menos, R$ 300 milhões. A estimativa, que se refere ao período de 2007 a 2016, envolve irregularidades em importações dos equipamentos e propina de 10% que incidia sobre os contratos.