Todos os anos, um terço do orçamento do Ministério da Saúde deixa de ser arrecadado com a saúde privada em função da renúncia fiscal relativa ao Imposto de Renda de pessoas físicas e jurídicas, consumo de medicamentos e desoneração de hospitais filantrópicos. O levantamento foi realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com a Secretaria da Receita Federal. Em dez anos (2006-2015), a soma que o Erário deixou de receber, beneficiando indiretamente empresas privadas, foi de R$ 274,94 bilhões. A Receita ainda não compilou os dados mais recentes, mas, segundo o economista Carlos Ocké Reis, um dos autores do estudo, é improvável que o valor tenha regredido, mesmo em um cenário de contração econômica. “As pessoas não abrem mão de serviços de saúde e os valores das mensalidades e procedimentos não pararam de crescer”, justifica.

O “afago”, que ultrapassa os R$ 30 bilhões em média a cada ano, poderia ser evitado e incorporado ao orçamento, por exemplo, se a regulação dos planos de saúde fosse mais eficiente com vistas a baixar os preços e ampliar a cobertura e a qualidade dos serviços. Procurada pelo JORNAL DO BRASIL, a Receita informou que só em 2016 a renúncia oferecida à população que paga planos chegou a R$ 9,2 bilhões. É praticamente o valor do subsídio que baixou o preço do diesel após a greve dos caminhoneiros (R$ 9,5 bilhões).

No Brasil, cerca de 47,2 milhões de pessoas usam planos de saúde, das quais pouco mais de nove milhões contratam planos individuais e familiares. Estes serviços têm reajustes e funcionamento regulados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que permitiu reajustes de preços de 10% em 2018 e 13,5% nos últimos três anos. Os aumentos são muito superiores à inflação anual, na casa dos 3%, ou mesmo da inflação específica do setor de saúde e cuidados pessoais do Índice de Preços do Consumidor (IPC), de 5,72%. A política de reajustes da ANS eleva fortemente o preço das mensalidades todos os anos. No caso dos planos coletivos, que não são regulados pela agência, essas altas são ainda maiores, muitas vezes acima dos 20%. Na ponta da cadeia, o que alivia o consumidor são as deduções no imposto de renda. Para Ocké, trata-se de um círculo vicioso, que permite abusos constantes por parte das operadoras, os chamados reajustes “expulsórios”, no jargão da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.

Depois das facilidades relacionadas aos planos de saúde, vêm os descontos oferecidos a quem usa hospitais e clínicas, que gira em tono dos R$ 2 bilhões. Ocké, que também preside a Associação Brasileira de Economia da Saúde, lembra que o caso do setor hospitalar é ainda mais grave, devido à ausência de regulação. Em franca internacionalização e concentração, o mercado de hospitais e clínicas simplesmente não tem preços ou serviços regulados. “O próprio setor de planos de saúde reclama dessa situação, para se ter uma ideia. Se os prestadores diretos fossem regulados, distorções seriam corrigidas e o valor poderia ser investido no SUS, sobretudo em atenção básica e atendimento de média complexidade, que sofrem de um subfinanciamento crônico”, opina.

As áreas mencionadas incluem serviços como o Programa Saúde da Família (PSF) e as Unidades de pronto atendimento (UPA). Segundo o JB apurou, a dotação de uma UPA do tipo mais complexo, com nove médicos, custa R$ 250 mil por mês aos cofres públicos. Assim, se os R$ 32,3 bilhões não arrecadados em 2015 fossem incorporados ao orçamento do Ministério da Saúde, poderiam cobrir os gastos de quase 10 mil UPAs de ponta no período. Hoje, muito usuários relatam melhor atendimento em unidades desse tipo do que nos hospitais privados associados a planos de saúde, não raro com filas.

Os autores do estudo lembram que, se os descontos não podem sumir de uma hora para outra, encarecendo a vida de milhões, devem ao menos ser regulamentados, recebendo um teto ou cortes etários como acontece no caso de renúncias ligadas à Educação. Eles acusam a contradição da PEC do teto de gastos de ter congelado o investimento direto e não gastos indiretos como as renúncias tributárias, o que afeta a rede pública e protege o funcionamento da privada. Em um movimento de regulamentação, argumentam, algumas distorções poderiam ser colocadas em xeque. Duas delas são as deduções oferecidas a hospitais filantrópicos regidos sob a lógica privada e os descontos ao uso de hospitais, clínicas e consultas médicas no exterior, orçado em R$ 903 milhões em dez anos. “Precisamos escolher se quem tem recursos para ir ao exterior deve contar com essas deduções”, diz Ocké.