A pandemia impõe ao país o redesenho de seu sistema de saúde. Mais que o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), hoje quase unanimidade em razão do seu meritório desempenho frente à Covid-19, as respostas estão na maior integração entre as redes públicas e privadas. A Constituição já prevê a complementariedade, mas agora é a realidade que a torna imperativa.

A crise do coronavírus deixou evidente que, sem o bom funcionamento da saúde suplementar, a sobrecarga em cima do SUS poderia ter sido fatal. Ao atender um em cada quatro brasileiros, os planos de saúde ajudam todo o sistema de saúde, sobretudo a rede pública, a curar e salvar vidas: cada beneficiário atendido por um plano de saúde é uma vaga a mais disponível para quem só tem o SUS a recorrer. Ampliar a integração e a complementariedade entre público e privado é um dos principais ensinamentos da pandemia. Não podemos perdê-lo de vista.

A Covid-19 escancarou a necessidade de mudanças nos modelos de assistência, que tenham o condão de ampliar o acesso, produzir desfechos de mais qualidade para os pacientes e atacar a escalada de custos que vitima os sistemas em todos os cantos do planeta: saúde custa caro e vai custar cada vez mais.

Junte-se a isso o envelhecimento populacional, uma conquista da nossa civilização para a qual ainda não nos mostramos preparados. O caso da demografia brasileira é ainda mais dramático porque aqui a transição na pirâmide etária tem sido muito mais rápida do que a verificada em economias mais avançadas.

De acordo com o IBGE, temos hoje 28 milhões de pessoas com mais de 60 anos no país, mais que o dobro do que havia em 1998. E vai continuar aumentando: a estimativa é termos quase 52 milhões de indivíduos nesta faixa etária daqui a 20 anos. Em termos relativos, as pessoas com mais de 60 anos eram 8% da população em 1998, são 13,4% hoje e serão 22,4% em 2038.

Diante destes desafios, a pandemia abre a possibilidade de avançarmos numa agenda múltipla, mas convergente entre os agentes do setor e, sobretudo, nos objetivos acima expressos.

São várias mudanças que podem colaborar para que os sistemas público e privado trabalhem mais próximos, mais integrados, dando mais eficiência, eficácia e efetividade aos recursos aplicados – que tendem a ser cada vez mais escassos com o baque econômico e a penúria fiscal do Estado brasileiro.

O primeiro desses fatores é a Atenção Primária à Saúde (APS). Uma das maiores lições da pandemia foi a necessidade de concentrar maior ênfase na prevenção. Cuidar da saúde para não ter que atacar a doença. O sistema público já desenvolve importante trabalho de atenção primária com as equipes de Saúde da Família.

As operadoras privadas, por sua vez, estão cada vez mais organizando a assistência para fazer preponderar a atuação dos médicos de família, capazes de resolver até 80% dos casos, segundo estudos internacionais.

A APS precisa ser cada vez mais o esteio sobre o qual se organiza o sistema de saúde, aproximando os esforços públicos e privados.

O segundo aspecto a ser observado diz respeito à incorporação de novas tecnologias nos tratamentos e terapias. É reconhecido que, na saúde, ao contrário dos demais setores da economia, a inovação tecnológica sempre encarece a prestação dos serviços, por motivos que vão do curto ciclo de vida das novidades até a disputa acirrada entre os desenvolvedores de soluções pelo rentável negócio da vanguarda tecnológica na saúde. Isso tem impacto brutal sobre os custos da assistência. Não é exclusividade brasileira; é assim em qualquer parte do mundo. E é uma dor de cabeça para todos.

O desafio global é desenvolver modelos que reduzam o impacto desses custos nas despesas com saúde. Aqui no Brasil, uma das saídas – seguindo modelos bem-sucedidos em outras praças – é unificar os processos de incorporação, hoje apartados entre SUS e saúde suplementar.

Tecnologias cada vez mais caras – e, logo, com custos ascendentes – também exigirão a adoção de novos modelos de remuneração de prestadores da cadeia de serviços de saúde, como hospitais, clínicas, médicos e laboratórios. Passa da hora de migrarmos para sistemas baseados em desempenho e resultados, em que o pagamento depende dos desfechos para os pacientes: ganha mais quem cura mais.

Aliado importante, tanto para o aumento da prevenção, quanto para a racionalização de custos na saúde, é a telemedicina, que se transformou na coqueluche da pandemia. E este é o quarto fator a contribuir para uma evolução mais positiva da assistência à saúde, uma ferramenta que pode e deve ser mais utilizada tanto pelos sistemas públicos, quanto pelos privados – como já vem ocorrendo em larga escala.

A Covid-19 ajudou a dizimar resistências de pacientes e médicos e a digitalização da medicina revelou-se um caminho sem volta. No país, a ausência de uma regulamentação definitiva ainda ameaça a permanência desta conquista, importante para levar a saúde aonde ela não consegue chegar nem pelas mãos do SUS nem pela das operadoras de planos e seguros de saúde.

Se avançarmos na implementação desta conjunção de fatores, estaremos caminhando para permitir que o sistema de saúde brasileiro assente-se sobre as duas pernas que, constitucionalmente, devem lhe dar melhor sustentação.

É fundamental prover melhores condições – inclusive de financiamento – para o SUS funcionar melhor. Mas, para isso, quanto mais a saúde suplementar tiver possibilidades de se expandir, melhor.

Neste sentido, o marco legal dos planos de saúde, que completou 22 anos em 2020, clama por aperfeiçoamentos e adaptações às novas realidades, de maneira a tornar a oferta mais acessível e o acesso mais democrático.

Segundo pesquisas de opinião realizadas rotineiramente, plano de saúde é o segundo item de desejo dos brasileiros, abaixo apenas da educação em escola particular. As mesmas pesquisas mostram que o usuário gostaria de contar com mais opções de cobertura que coubessem no seu bolso. Da parte regulatória, o mercado pede mais liberdade nas regras para que as empresas possam concorrer por planos individuais.

Tudo considerado, não é difícil vislumbrar que estamos vivendo, em todo o mundo e também no Brasil, uma transição que pode permitir a introdução de novos modelos, novas respostas e soluções que promovam mais saúde para muito mais pessoas.

Essas mudanças são tanto mais necessárias, quanto mais crítica fica a situação do mercado formal de trabalho – do qual dependem 67% dos planos de saúde no país – e quanto mais a situação fiscal do Estado piora.

A pandemia foi um choque. Mas está servindo para colocar a saúde no centro das atenções de todos. A humanidade inteira sabe que, mais que nunca, prover assistência, ampliar acesso, racionalizar estruturas e diminuir custos são tarefas obrigatórias para enfrentar desafios que só tendem a aumentar. A hora de mudar é agora. Integrar mais os sistemas públicos e privados é a melhor maneira de conseguir salvar mais vidas.