“A discussão do modelo de cuidado, da forma como se apresentam as relações econômicas, é uma realidade que finalmente o setor está assumindo como uma questão a ser resolvida” disse Fábio Gastal, coordenador científico do CISS – Congresso Internacional de Serviços de Saúde. O CISS é o encontro para discutir os grandes temas da saúde, uma oportunidade de democratizar as informações do setor, com troca de experiência entre gestores e líderes da área de vários países.

Gastal conta que existe um processo histórico, que nos últimos 30 anos tentou organizar o sistema de saúde do país: de um lado uma série de problemas, do outro, entregas muito relevantes para a população. Nessa perspectiva de aperfeiçoamento contínuo, o Brasil está finalmente chegando, na sua opinião, às discussões microeconômicas. Ao contrário das amplas discussões estratégicas, pauta das discussões dos sistemas de saúde até então.

“A medida que o Brasil começou a resolver suas questões econômicas, como o controle da inflação e queda dos juros, se criou um ambiente favorável à discussões consistentes das relações microeconômicas entre fontes pagadoras e prestadores”, explica. Hoje existem relações distorcidas de cuidado, em modelos que não visam a saúde do paciente, e uma das saídas para melhorar a qualidade assistencial, é entender a lógica de remuneração de médicos, hospitais e serviços de saúde.

Segundo ele, no Brasil, ainda mantemos no setor privado majoritariamente o sistema fee for service, absolutamente estruturado e tradicional, como era há 50 anos na Europa e Estados Unidos. “Beira à corrupção. No sentido de não estar sendo estimulado para fazer boa medicina, mas sim, medicina volumosa. Muito procedimento, muita consulta, muito atendimento. Porque se remunera pelo muito e não pela qualidade entregue.”

O cuidado centrado no paciente, com o usuário no lugar certo é um dilema postergado. No Brasil, a orientação das portas de entrada se torna particular especialmente pela dicotomia do coletivo versus soberania individual, apresentada pelo Sistema Único de Saúde e pelos Planos de Saúde. Nos países que se envolveram e se comprometeram com o processo de transformação do setor de saúde, uma das primeiras discussões foi: o que é coletivo e o que é individual. É um dilema estrutural, que se não resolvido, impossibilita a criação de políticas públicas e sociais”. Um exemplo citado é o das vacinas. Há uma tendência de queda da cobertura vacinal em função das fake news, é o paradigma individual acima do coletivo. O processo de imunização é importante para o bloqueio imunológico, não interessa se o indivíduo gosta ou não de agulha. A segurança coletiva está acima dos desejos de cada pessoa.

Gastal diz que é a mesma lógica para o sistema de saúde. A medicina privada ficou praticamente 10 anos parcialmente regulada, da sua criação até 1999. E surgiu com um posicionamento competitivo, em relação ao sistema público, de que cada um faz o que quer, desde que pague a sua mensalidade.

Então, a partir do momento que a promessa fundadora da medicina suplementar tem como o predomínio do paradigma individual, vira uma conta atuarial contratual – referente à expectativas e riscos. “Isso quer dizer que os preços precisam ficar livres. Quando se criou a ANS, o paradigma coletivo decidiu regular a saúde privada no Brasil. A grande discussão hoje é, se nós queremos um bom sistema privado de saúde para a população, não é possível oferecer na lógica do individual”

O conceito de financiamento de saúde é mutualista, no qual o coletivo paga pelas ações individuais. Por mais diversas que sejam as modelagens, não se pode vender para o usuário a perspectiva que ele pode fazer o que quiser. Para um bom sistema de saúde, é necessário que o percurso seja orientado. Que exista um médico de família, de atenção primária, que faça o projeto de cuidado desse usuário, oriente e proteja.

Por mais informado que o usuário seja como indivíduo, ele não tem conhecimento suficiente para fazer o percurso assistencial correto dentro do sistema de saúde de acordo com as suas reais necessidades. Gastal dá o exemplo das especialidades de prateleira, no qual o beneficiário acha que está precisando de um psiquiatra, vai lá e “pega”, sem ninguém para o orientar se esta é a melhor escolha. “Isso é ruim para a saúde dele, as evidências científicas mostram. O custo também fica insustentável, vide o modelo americano. As empresas dos Estados Unidos já entenderam que se elas deixarem essa lógica de supermercado se perpetuar, elas não vão conseguir se manter.”

O serviço de atenção primária, de certa forma, faz esse papel de coordenação de cuidado e percurso dentro do sistema de saúde. O coordenador científico cita que chegamos a um nível de capacidade, que da mesma forma que o sistema é capaz de coisas incríveis, se mal utilizado, existe um risco brutal. Existe uma ilusão equivocada que beira a alucinação.  As pessoas acham que tudo que fazemos em termos de saúde é inócuo, que não existe risco. O hospital é um ambiente de altíssimo risco. Então a medida que se entende a existência de um risco inerente, qualquer coisa que se faça em termos de intervenção médico assistencial, é importante existir uma orientação.

Em países da Europa Ocidental, o modelo médico é mais estruturado e a presença do Estado é maior na vida das pessoas. Se o usuário não se registra na Seguridade Social ou não se apresenta no posto do médico de família, não é possível pagar uma conta de luz, por exemplo. Os serviços estão associados e o paradigma coletivo está acima do individual.

Nos Estados Unidos e no Brasil, não há essa clareza social, então existe a necessidade de se inventar modelos para atrair a população a pensar mais racionalmente em seu cuidado. Formas mais inteligentes de utilizar os recursos disponíveis. Isso mostra que o problema da saúde hoje é muito mais político, comportamental e cultural, do que realmente tecnológico.