A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu, em 2019, polêmica decisão no sentido de que as operadoras de planos de saúde não podem rescindir unilateralmente e sem motivo idôneo os contratos coletivos com menos de 30 beneficiários/consumidores, ou vidas, no jargão do setor, em absoluta contrariedade à regulamentação desses contratos pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

No referido julgamento, a ministra relatora Maria Isabel Galloti promoveu uma equiparação, sem supedâneo legal, dos planos coletivos com menos de 30 vidas, aos planos individuais/familiares, de forma a atrair para aqueles contratos a vedação legal de cancelamento unilateral imotivado, insculpida no artigo 13, parágrafo único, II, da Lei 9.656/1998, não obstante tal preceito se direcionar exclusivamente aos contratos de natureza individual/familiar.

A decisão do REsp 1.776.047/SP se baseia na premissa de que os estudos atuariais realizados para aferir as mensalidades nos dois tipos de contratação são semelhantes. Neste sentido, a ministra argumenta que tanto nos planos individuais, quanto nos coletivos com menos de 30 vidas, existe vulnerabilidade do beneficiário/consumidor em relação às operadoras.

Por tal motivo, estabelece que tais apólices merecem o amparo isonômico do Código de Defesa do Consumidor (CDC), não se aplicando, por conseguinte, os dispositivos contratuais firmados entre os consumidores e operadoras, nem os normativos editados pela ANS, como a Resolução Normativa 195/2009, que dispõe sobre a classificação e a contratação dos planos de assistência privada à saúde.

Dessa forma, visando o melhor debate acerca do tema em destaque, será traçado um breve panorama sobre as particularidades dos planos coletivos empresariais com menos de 30 vidas, no âmbito da Regulamentação editada pela ANS e os impactos da decisão em comento.

O que diz a regulamentação
A ANS definiu logo no artigo 3º da RN 195/09 os modelos possíveis de contratação de planos de saúde, conceituando o contrato individual familiar como aquele destinado à livre adesão de pessoas físicas, com ou sem a participação do grupo familiar do contratante.

Em seu artigo 5º a norma dispôs acerca dos contornos da contratação coletiva, definindo-a como aquela destinada, exclusivamente, a beneficiários vinculados à pessoa jurídica, por relação empregatícia ou estatutária, estendendo a participação, em caráter residual, visto ser o último inciso do dispositivo, também ao grupo familiar até o terceiro grau de parentesco consanguíneo e até o segundo grau de parentesco por afinidade, cônjuge ou companheiro do beneficiário titular.

A disposição anterior é de suma relevância à presente reflexão sobre o julgado do STJ, porquanto expressa de forma latente que o objetivo da regulação ao distinguir os referidos modelos de contratação cingiu-se exatamente à figura do contratante, eis que no plano individual e familiar, segundo a própria nomenclatura, a adesão é livre a pessoas físicas e seus familiares, enquanto no modelo de contratação coletiva direciona-se, como já dito, tão somente à pessoas jurídicas, permitindo, em último caso, a participação do grupo familiar.

Ou seja, o número inferior a 30 beneficiários ou a eventual permanência em um contrato coletivo empresarial do beneficiário titular e seus familiares não retira a natureza empresarial da contratação, não sendo essa a regulação da ANS.

Veja-se que a referida norma trata de forma absolutamente distinta a situação de perda do vínculo do beneficiário titular com a operadora do plano de saúde.

Enquanto no plano individual a perda do vínculo contratual do titular com a operadora não extingue o plano de saúde dos dependentes, que podem assumir a posição de titularidade do contrato, na contratação coletiva esse vínculo, caso perecido, implica também na perda do vínculo dos beneficiários dependentes, haja vista a extinção do pressuposto de elegibilidade que é o vínculo empregatício ou estatutário do titular com a pessoa jurídica contratante.

E a norma, após essa conceituação, traça inúmeras distinções entre referidos modelos de contrato, tais como os prazos carenciais e cobertura de doenças preexistentes, reajustes anuais da contraprestação pecuniária e aquela que concerne ao objeto da decisão do STJ em comento, referente à possibilidade de cancelamento imotivado dos contratos coletivos, após a vigência mínima de 12 meses, respeitada a comunicação prévia de 60 (sessenta) dias.

Assim, resulta patente a contrariedade do entendimento manifestado pela ministra Galotti à regulamentação e a ausência de supedâneo normativo para equiparação entre o contrato coletivo com menos de trinta vidas e os contratos individuais familiares.

Formação de preço dos planos coletivos empresariais
As distinções entre os custos dos contratos coletivos empresariais e individuais também são de extrema relevância à presente análise, iniciando-se essa abordagem pela manifesta disparidade entre os prêmios cobrados nos contratos coletivos empresariais, inferiores àqueles praticados nos contratos individuais, em função do número de vidas abarcadas por cada tipo de contrato, que afetará a estrutura econômico-financeira da avença (formação de preços, taxa de sinistralidade, risco etc.).

Planos coletivos empresariais possuem contraprestação pecuniária sensivelmente mais branda, considerando a capacidade de diluição dos riscos entre um grupo de pessoas pré-definido, e com dados epidemiológicos de domínio dos contratantes.

Enquanto isso, o plano individual/familiar é formado por pessoas com as mais diversas idades e sem conhecimento pela operadora dos dados de saúde dos dados epidemiológicos desse grupo. Em face do aumento do risco assistencial, os preços dessas apólices possuem valor mais elevado em comparação aos planos coletivos empresariais.

A estrutura de preço dos planos de saúde baseia-se no sistema de mutualismo. Nesse método, a contribuição de cada indivíduo participante de um grupo de pessoas formará o montante necessário para o custeio da assistência ao participante no momento devido. Dessa forma, pode-se dizer que o montante supracitado é um “fundo” voltado para a contenção dos riscos envolvidos na atividade empresarial em questão.

Essa formação de custos estrutura-se no binômio prêmio x risco, em que o segundo elemento consiste na exposição do beneficiário a uma despesa médica, de sorte que é tão somente o estudo atuarial prévio, dos riscos agregados a massa de beneficiários, o fator preponderante ao estabelecimento do preço da mensalidade do plano de saúde.

Esse é o fator motivador do menor prêmio pago pelos beneficiários de contratos empresariais, em comparação aos individuais, haja vista que na contratação coletiva é possível a operadora conhecer previamente o grupo de beneficiários vinculado à pessoa jurídica contratante, permitindo um apurado estudo atuarial de riscos e classificação por faixas etárias, de acordo com os dados epidemiológicos dessa carteira.

Acrescente-se ainda a capacidade de diluição desse risco por toda a massa de beneficiários do contrato, ao contrário do que ocorre na contratação individual em que se desconhece o contratante.

A RN 309/2012, da ANS, estabeleceu que os chamados planos PME (pequenas e médias empresas) sejam agrupados para que sofram um único reajuste, possibilitando, dessa forma, uma maior diluição dos riscos e, em consequência, uma mensalidade mais acessível aos beneficiários/consumidores.

Ou seja, há de forma evidente um benefício consagrado pelo regulador a esses beneficiários de contratos coletivos, ao garantir custos menores na adesão.

Como mencionado, a norma diferencia sob outros aspectos os aludidos contratos, independente, repise-se, do número de vidas, dispondo sobre prazos carenciais, reajustes e cobertura a doenças preexistentes, culminando com a previsão de cancelamento imotivado após o decurso da vigência mínima de 12 (doze) meses.

Interpretar essa previsão normativa como ferramenta concedida às operadoras de planos de saúde em detrimento dos consumidores equivale a ignorar a intenção do regulador em prestigiar a livre concorrência e negociação entre os contratantes.

Poder de barganha
A contratação coletiva empresarial ostenta fator de essencial destaque que é o poder de barganha exercido, em pé de igualdade, por ambas empresas contratantes. Esse é exatamente um dos fatores que possibilita a oferta de mensalidades mais acessíveis nos planos coletivos pois, de modo geral, essa capacidade de barganha pode ser exercida tanto pelas operadoras quanto pelas empresas contratantes, que oferecem a massa de beneficiários (ainda que volátil, a depender das condições econômicas) e, em contrapartida, exigem os menores custos para a assistência suplementar à saúde.

Assim, a edição do aludido dispositivo que permite a rescisão imotivada a ambos contratantes é exatamente o fator garantidor desse poder de barganha, que possui como único objetivo incentivar a concorrência a ofertar preços competitivos a esses consumidores.

No entanto, a decisão proferida pela ministra Isabel Galloti, de certa forma, mitiga o poder de barganha das operadoras e dos próprios consumidores. Na medida em que as partes não podem rescindir unilateralmente um plano coletivo com menos de 30 vidas, o seu poder de negociação de custos é claramente limitado, além de possibilitar, em última hipótese, um desequilíbrio econômico-financeiro ao contrato, que pode colapsar à medida que os recursos para diminuição dos riscos se encontrem escassos.

E mais, a decisão do STJ ignora a transitoriedade do número de vidas do contrato, eis que a presença momentânea somente do titular e seu grupo familiar pode ser suplantada pelo acréscimo de outros funcionários da pessoa jurídica contratante.

Ora, se é justamente o poder de barganha um dos fatores que possibilita uma redução significativa dos preços dos planos, por qual motivo há de se restringir a capacidade de negociação das contratantes?

Lacuna normativa e segurança jurídica
A assistência médica privada, de natureza supletiva a atividade estatal de garantia de acesso à saúde, deve seguir preceitos que estabeleçam segurança jurídica aos contratantes. Por essa razão, a ANS, exercendo seu papel de agência reguladora, estabeleceu normas específicas a respeito da rescisão contratual de planos de saúde.

Pela RN 195/2009, a agência reguladora dispôs sobre a possibilidade de cancelamento unilateral do contrato de plano de saúde coletivo empresarial por ambas as partes. Veja-se:
“Art. 17 As condições de rescisão do contrato ou de suspensão de cobertura, nos planos privados de assistência à saúde coletivos por adesão ou empresarial, devem também constar do contrato celebrado entre as partes.
Parágrafo único. Os contratos de planos privados de assistência à saúde coletivos por adesão ou empresarial somente poderão ser rescindidos imotivadamente após a vigência do período de doze meses e mediante prévia notificação da outra parte com antecedência mínima de sessenta dias.”

Referido dispositivo legal apenas reforça o protagonismo das disposições contratuais acerca das questões que versem sobre cancelamento dos contratos de plano de saúde. Como pôde-se perceber do excerto destacado, as condições de cancelamento da apólice de plano de saúde devem constar do contrato avençado entre as duas pessoas jurídicas, cuja natureza de constituição sabidamente afasta das mesmas a figura do hipossuficiente.

Veja-se que a faculdade de cancelamento imotivado a ambos contratantes é uma escolha regulatória de solução mais adequada, levando-se em consideração não apenas os critérios de conveniência e oportunidade, como também os critérios técnicos em atenção a políticas de mercado.

Os atos normativos editados pela agência são provenientes de discricionariedade técnica, decorrem das escolhas realizadas pelo ente estatal com embasamento científico, sendo lesiva a alteração pelo Poder Judiciário dos atos praticados em estrita atenção a essa discricionariedade, ainda mais quando dissonantes do texto da norma, e por decisões judiciais baseadas em interpretações equivocadas acerca de atos exarados dentro da mais inquestionável competência normativa.

Outrossim, a decisão do STJ cria verdadeira lacuna normativa acerca da rescisão dos planos coletivos empresariais com menos de 30 (trinta) vidas, atraindo insegurança jurídica que naturalmente gera efeitos danosos a atividade empresarial. O desenvolvimento de estratégias de mercado se torna incerto, tendo em vista a imprevisibilidade do arcabouço normativo a balizar a atividade.

Essa insegurança jurídica provocada pela lacuna normativa acarretará menor acesso aos planos de saúde por parte da população. Isso porque, conforme exposto, em uma relação de extrema imprevisibilidade jurídica, os riscos da atividade tendem a se tornar maiores, gerando um aumento dos preços das apólices e, por conseguinte, uma restrição ainda maior a novos grupos que pretendam ingressar em um plano de saúde.

Ativismo judicial
A intervenção do Judiciário em contratos revestidos do pálio regulatório reclama profunda reflexão, sobretudo quando não verificado qualquer vício de legalidade no ato administrativo.

Ao contrário, de acordo com o artigo 37 da Constituição Federal, a Administração Pública deverá praticar seus atos de acordo com o princípio da legalidade. Dessa forma, ao prever o cancelamento de planos coletivos de forma imotivada, a agência reguladora atesta categoricamente a legalidade de tal conduta. Ora, ao desprezar esse conceito, o Poder Judiciário extrapola os limites de sua atuação e ignora a necessidade de formação da devida normatização acerca do tema.

Nesse passo, importante destacar que a decisão, apesar de se mostrar eficiente em um primeiro momento, aos consumidores de contratos rescindidos imotivadamente, pode se tornar um tiro pela culatra. Veja-se o entendimento da Agência Reguladora acerca de decisões judiciais que geram insegurança jurídica:

“Data vênia, já são muitas as naturais oscilações do mercado de saúde suplementar, de modo que qualquer variação imposta de forma descuidada que fragilize as projeções atuariais pode trazer sérios problemas a este sensível segmento econômico. Com efeito, não se mostra salutar qualquer medida tendente a incrementar o quadro de incerteza neste setor sem a devida análise do seu impacto, sendo certo que segurança jurídica e previsibilidade devem ser encarados como efetivos pilares. (…) Assim, deve se ter em conta que o incremento do quadro de incerteza no setor de saúde suplementar acarretará, invariavelmente, o aumento do preço do produto. Diante de um cenário em que não se faz possível um rigor técnico para prever o risco efetivamente coberto, a consequência natural seria a ampliação da projeção de receita, o que, em miúdos, significa aumento do preço do produto ou quiçá reajustes mais acentuados, e, portanto, aumento do custo para o consumidor.” (grifos do redator)

Ora, o Código Civil dispõe, em seu artigo 421, que a liberdade de contratar está limitada à função social do contrato, não havendo que se falar em intervenção do Estado, salvo nos casos em que uma das cláusulas do acordo represente, de fato, uma ameaça à coletividade. Frise-se que o parágrafo único do mesmo artigo faz clara menção à excepcionalidade da persecução da função social do contrato por parte do Poder Público, obviamente, tendo em vista o princípio da intervenção mínima do Estado.

Pode-se perceber, dessa forma, que eventual intervenção do Judiciário está adstrita à observância dos princípios da separação de poderes e da segurança jurídica. Com relação ao mercado da assistência suplementar à saúde, cumpre registar que “a ANS não se limitará a exercer uma forte fiscalização do cumprimento de supostas normas preestabelecidas; grande parte de sua atividade consistirá na fixação continuada destas normas, que incidirão não apenas nas relações das operadoras dos planos de saúde com o Poder Público, como nos mais relevantes aspectos das relações contratuais destas com os seus clientes (art. 4º, II, a VII, IX, XVIII e §2º, da Lei 9.961/00)”.

Os beneficiários do contrato rescindido não estarão excluídos da saúde suplementar
Fundamental asseverar que o cancelamento de contratos coletivos empresariais não retira do beneficiário/consumidor a possibilidade de gozar da assistência suplementar à saúde, revelando a argumentação da 4ª Turma do STJ notório desconhecimento da regulamentação da ANS.

Isso porque a RN 438/2019 possibilitou a portabilidade de usuários de planos de saúde coletivos empresariais, na hipótese de perda do vínculo contratual pela pessoa jurídica contratante. Por meio da mencionada resolução, os beneficiários de um plano cancelado podem, mediante o preenchimento de alguns requisitos, ingressar em planos de outras operadoras, sem cumprir prazos de carência, com valor de prêmio e cobertura semelhante ao outrora contratado. Ou seja, é explícito o cuidado da agência reguladora com o beneficiário/consumidor exposto a um possível cancelamento de contrato coletivo, não havendo, dessa forma, a necessidade do Poder Judiciário extrapolar sua competência em prol de um ativismo descuidado.

Ao conduzir o julgamento do REsp 1.776.047/SP, a ministra Galloti afirma que existem semelhanças entre a sinistralidade e diluição de risco nos planos coletivos de pequeno porte e os planos individuais. Entretanto, nenhum embasamento científico foi utilizado para sustentar a tese de que os planos de saúde coletivos com menos de 30 vidas não podem ser cancelados unilateralmente. Com essa decisão, o Judiciário se sobrepõe à autonomia das partes celebrantes desses contratos, gerando insegurança jurídica, tanto para os consumidores dos planos de saúde como para as operadoras.

decisum, como já dito, gera indesejável insegurança jurídica, despreza as normas dispostas na RN 195/09, e viola o princípio da separação de poderes.

Os contratos coletivos empresariais se caracterizam por prescindir de contrapartida pecuniária sensivelmente inferior às praticadas nos contratos individuais. Assim, a decisão gera um tratamento diferenciado e especial aos contratantes de planos coletivos empresariais com menos de trinta vidas que, por essência, já são mais benéficos ao consumidor do que os planos individuais. Ou seja, sob a ótica dessa decisão, os beneficiários de planos coletivos PME passam a ter mensalidades menos onerosas que os beneficiários de planos individuais, e têm a mesma proteção normativa que aqueles que efetuam o pagamento de mensalidades mais caras.

Aparentemente, o Poder Judiciário opta por escolher de modo arbitrário a quem deve conceder proteção, mesmo que para isso tenha que jogar por terra a segurança jurídica presumível quando da edição de expressa norma regulatória.

Dessa forma, pode-se perceber que a decisão da 4ª Turma do STJ é responsável pela instauração de insegurança jurídica sem precedentes, em se tratando da contratação de planos de saúde coletivos com menos de 30 vidas. Além de se utilizar de argumentos que não guardam relações estreitas com o tema da rescisão unilateral dos planos de saúde, a ministra Isabel Galloti deixa de observar a regulamentação da ANS, praticando ativismo judicial sob a escusa de proteger consumidores cuja tutela de interesses já está resguardada pela agência reguladora, e fulmina o poder de barganha das empresas contratantes, servindo de verdadeiro desincentivo comercial a um mercado já tão combalido em decorrência da grave crise econômica e do desemprego que afasta beneficiários da saúde suplementar.