O SUS (Sistema Único de Saúde) nasceu a partir da Constituição Federal, em 1988. Após intensos debates travados nas conferências nacionais de saúde e na Assembleia, acabou vencendo o modelo que defendia que “saúde é direito de todos e dever do Estado”.

A regulamentação da proposta, contudo, só aconteceu em 1990, com a publicação da Lei nº 8.080, que previa acesso integral, universal e igualitário à saúde pela população brasileira.

Era uma mudança significativa em relação ao sistema anterior, que privilegiava quem tinha dinheiro e os trabalhadores com carteira assinada.

Assinado o texto, nascia um sistema único e grandioso. Com ele, surgiram também questões que impactam até hoje a eficácia e a qualidade dos serviços prestados.

O UOL lista a seguir alguns desses problemas, que há 30 aguardam soluções.

Orçamento insuficiente

O SUS foi criado com um gargalo bem conhecido para gestores e usuários: a falta de dinheiro. Com o fim do Inamps (Instituto Nacional Assistência Médica da Previdência Social), o novo sistema herdou equipamentos, estrutura e servidores, mas, na divisão do Orçamento, a Previdência ficou com a maior parte dos recursos.

Isso aconteceu porque a primeira norma sobre o financiamento do SUS, o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, de 1988, definiu que o novo sistema deveria receber no mínimo 30% do Orçamento da Seguridade Social até que fosse aprovada a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) daquele ano.

“O dinheiro que a Previdência gastava com saúde não foi para o SUS, ficou no INSS. Ele [o SUS] arcou com toda a estrutura hospitalar e sua manutenção, sem receber a parte da Previdência. Era muito dinheiro”, diz o professor e pesquisador Luiz Carlos Fadel, da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).

Essa cota de 30% nunca foi cumprida.

Para piorar, a década de 1990, quando houve o maior esforço para implantação e regulamentação do SUS, foi marcada por uma política de ajustes de gastos, especialmente na área social.

A saída encontrada pelo governo foi a criação, em 1996, da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira).

O imposto incidia sobre todas as movimentações bancárias e nasceu exclusivamente para o financiamento da saúde. Apesar disso, nos 11 anos em que esteve em vigor, a CPMF arrecadou R$ 223 bilhões, sendo que R$ 33,5 bilhões foram usados para financiar outros setores. Os destinos desse montante foram caixa do Tesouro Nacional, Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza e Previdência Social.

E, se a verba sempre foi curta, a perspectiva é que fique ainda mais escassa, já que o Congresso aprovou no fim de 2016 uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que congela os gastos na saúde, entre outras áreas, por 20 anos.

Some-se a isso o fato de que nem o dinheiro reservado ao SUS vem sendo executado conforme o prometido. Até o fim de 2017, a União tinha uma dívida de R$ 20,9 bilhões com a saúde. O resultado é que áreas importantes como o Samu (Serviço de Atendimento Médico de Urgência), o Programa Saúde da Família, a manutenção da rede hospitalar e até a compra de medicamentos e vacinas deixaram de receber parte da verba prometida.

Esse dinheiro fez muita falta. Segundo um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), para cada 1% de gasto per capita investido a mais na saúde, o brasileiro ganharia, aproximadamente, cinco anos de vida.

Além da longevidade, o corte de investimentos tem impactos também na mortalidade infantil.

Ainda assim, mesmo com orçamento reduzido, o SUS atende três vezes mais pacientes do que a rede privada e com um orçamento pouco menor do que é pago pela saúde suplementar no Brasil.

Desigualdade entre os profissionais

Outro ponto não resolvido na criação do SUS é a falta de um padrão de remuneração e de recursos humanos para os profissionais vinculados ao sistema público.

“Não temos uma política de pessoal padronizada para cada carreira no SUS. Existem muitas especialidades, mas não há formas de controle, supervisão e formação. Isso ficou por conta de cada município, e o impacto é devastador, porque diminui o envolvimento e a responsabilização dos profissionais com os usuários, gera desumanização e heterogeneidade dos serviços”, diz Gastão Wagner de Sousa Campos, presidente da Abrasco (Associação de Brasileira de Saúde Coletiva).

O tema, no entanto, chegou a ser discutido no Congresso Nacional em 1989, mas a criação de planos de cargos, salários e carreiras em cada esfera de governo, além de piso nacional para cada categoria do SUS, foram propostas vetadas pelo então presidente Fernando Collor de Mello em 1990.

Pouco tempo depois, o Executivo editou uma nova norma, que definiu a necessidade de criação pelos municípios, estados e o Distrito Federal de uma “comissão de elaboração do plano de carreira, cargos e salários” para os servidores do SUS. Continuou de fora, no entanto, o estabelecimento de um piso e um plano nacional de recursos humanos.

“No SUS, você pode encontrar em um mesmo espaço servidores municipais, estaduais e federais e prestadores de serviço, cada um contratado sob um regime diferenciado. É muito complexo e nenhuma administração pública enfrentou isso”, explica o professor Luiz Carlos Fadel.

A ausência dessa política cria desigualdade de formação dos profissionais. Os usuários, por sua vez, acabam sofrendo com a má prestação de serviços.

Políticos ocupando áreas técnicas

Outro problema é que a lei permite que cargos de direção sejam ocupados por pessoas externas ao serviço público e sem formação na área. Para atender a indicações e acordos políticos, ações estratégicas para a criação e a manutenção de programas de saúde acabam conduzidas por profissionais sem experiência na área.

Os dois ministros da Saúde da gestão Temer, por exemplo, têm formação bem distante: Ricardo Barros, que esteve no cargo entre maio de 2016 e abril deste ano, é engenheiro civil filiado ao PP (Progressistas). Já Gilberto Occhi, que assumiu a pasta para que o antecessor concorresse a uma vaga de deputado federal, é advogado e fez carreira na Caixa Econômica Federal.

Em outros casos, a alta rotatividade nos cargos de comando impede que programas importantes sejam continuados.

“A gestão do SUS é um gargalo gravíssimo, um problema muito sério. Grande parte dos gestores nos mais de 5.000 municípios são nomeados pelo prefeito. Ele indica gente de seu partido, mas não dá tempo de ter o aprendizado, de entender o que é saúde, e já entra outro [prefeito]. Esse é um problema que só vai se resolver se mudar o sistema político brasileiro”, diz o professor da Fiocruz.

Descentralização dos serviços

O SUS nasceu da ideia de que a maior parte dos serviços fosse realizada pelos municípios, mais próximos da população e que poderiam realizar de modo mais sistemático a prevenção, um dos pilares da reforma sanitarista.

A longo prazo, as coisas não funcionaram exatamente como o previsto, já que, segundo especialistas, em muitas áreas não há uma divisão clara de responsabilidades, o que costuma gerar omissão por parte dos governos e má prestação de serviços.

“O SUS optou por um grau de descentralização. Essa municipalização permitiu que as secretarias se omitissem”, diz o presidente da Abrasco.

Além disso, os investimentos federais caíram nos últimos anos: em 1993 eram de 73% e passaram para 43% em 2016, aumentando o peso para os demais entes federativos. Em 2016, municípios foram responsáveis por 31% e estados arcaram 26% do custo total do sistema –bem acima do mínimo de 15% e 12%, respectivamente, definidos pela Constituição.

“A gente percebe que a União tem fugido de apoiar estados e municípios e de assumir o seu papel de coordenação do SUS. Você lê ‘a União, os estados e municípios têm responsabilidades iguais’, então de quem é a gestão de hospitais?”, questiona o presidente da Abrasco. “Isso não está definido.”

Dependência do setor privado

O SUS foi criado com uma rede incipiente de hospitais e outros equipamentos de saúde. Os poucos que começaram a funcionar imediatamente eram os do Inamps ou os que pertenciam a municípios, estados e União. Isso fez com que alguns lugares, como o Rio, começassem com uma boa estrutura, por conta dos hospitais federais em funcionamento, mas essa não foi uma regra.

Sem estrutura suficiente para garantir o acesso universal e gratuito, a saída foi permitir por lei um sistema complementar, com clínicas privadas conveniadas e remuneradas pela tabela SUS. Em muitos municípios do interior, elas são responsáveis por boa parte dos atendimentos gratuitos.

A lei também prevê que convênios sejam firmados com empresas para o fornecimento de medicamentos e equipamentos médicos, o que, em alguns casos, abre brechas para superfaturamentos e desvios.

Vantagens aos planos de saúde

O mercado dos planos de saúde cresceu no Brasil na década de 1950 e ganhou participação no mercado durante a ditadura militar. Isso aconteceu porque existia uma crescente massa de trabalhadores de empresas dispostas a pagar (ao menos parcialmente) pelo serviço e porque havia um sistema precário de saúde.

Com uma fatia importante do mercado na década de 1980, a rede suplementar garantiu sua continuidade com a redemocratização.

Continuaram de fora do SUS, portanto, parte dos trabalhadores com registro que tinham direito aos planos privados pagos.

“Com isso, o SUS perde significativo apoio de um ator político que é exatamente a massa de trabalhadores organizados”, afirma Telma Menicucci, professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), em artigo publicado na revista científica História, Ciências, Saúde-Manguinhos.

Autorizados a funcionar pela Constituição, os planos de saúde, no entanto, só ganharam norma específica em 1998. A fiscalização veio apenas no ano seguinte, com a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar).

“Além dos convênios, é importante chamar a atenção para a decisão, também da década de 1980, quanto aos incentivos fiscais dados inicialmente às empresas empregadoras para deduzir de seus lucros o gasto com a assistência à saúde para seus empregados e, portanto, obter redução no Imposto de Renda”, diz a professora da UFMG.

Publicado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em 2016, o estudo “Radiografia do Gasto Tributário em Saúde 2003-2013” mostra que R$ 25,4 bilhões, ou 30,5% dos gastos federais, deixaram de ser arrecadados por conta de renúncias fiscais na área saúde em 2013.

Desse montante, 37,8% eram de renúncias para pessoas físicas, 16% para jurídicas, 29,1% de subsídios para hospitais filantrópicos e 17,1% para medicamentos e produtos químicos.

Hoje, cerca de 25% da população tem essa dupla cobertura, das operadoras privadas e do SUS.

Para tentar diminuir essa desigualdade, em fevereiro deste ano, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que é constitucional que o sistema público cobre dos planos toda vez que atender um paciente encaminhado pela rede privada. A dívida naquele mês alcançava o montante de R$ 5,6 bilhões.