O primeiro trabalho científico publicado em revista internacional sobre a vacina russa contra a covid-19 registrou resultados promissores, mas os pesquisadores admitem que são necessários mais testes para a comprovação cabal de sua eficácia.

O estudo sobre as fases 1 e 2 de estudos da chamada Sputnik V foi publicado pela revista britânica “The Lancet”.

Segundo ele, o medicamento aplicado em duas doses mostrou eficácia de 100% e apontou uma resposta imune até 1,5 vezes superior à registrada pelo imunizante desenvolvido pela AstraZeneca/Universidade de Oxford, que o governo federal testa no Brasil.

Para o presidente do Fundo de Investimento Direto da Rússia, Kirill Dimitriev, o resultado serve para “responder às dúvidas do Ocidente” sobre a vacina. O fundo bancou a pesquisa do Instituto Gamaleya, criador do imunizante.

As questões, contudo, permanecem e são respaldadas pelos próprios autores do estudo. “Ensaios grandes e de longo prazo incluindo a comparação via placebo, e monitoramento adicional, são necessários para estabelecer a segurança e eficácia da vacina no longo prazo para prevenir a infecção”, afirma o texto.

O estudo só analisou os efeitos em 76 pessoas de 18 a 60 anos, e não foi randomizado (quando não há a escolha dos indivíduos) nem duplo-cego (quando um grupo é injetado com composto inócuo sem que ele ou o médico saiba). Eles duraram 42 dias, levando ao registro da vacina em 11 de agosto.

A aprovação do Ministério da Saúde russo, que permitiu ao país propagandear a Sputnik V como primeira do gênero no mundo, veio antes da chamada fase 3, de grande escala. Os russos afirmam que já começaram ela com 2.500 dos 40 mil voluntários que pretendem acompanhar.

Enquanto isso, o plano é, a partir de algum momento de setembro, vacinar já profissionais da saúde do país. O registro do Ministério da Saúde, contudo, só prevê vacinação geral a partir de janeiro de 2021.

Alexander Ginzburg, diretor do Gamaleia, afirmou em videoconferência nesta sexta acreditar que os estudos da fase 3 estarão prontos em outubro ou novembro.

Como já havia ficado claro em entrevista no dia 20 de agosto, a Rússia ajustou seu discurso inicial, que dava a entender que iria vacinar maciçamente sua população de imediato, e está adicionando elementos científicos mais sólidos à sua campanha pela Sputnik V aos poucos.

Politicamente, se o imunizante for mesmo eficaz e seguro, isso poderá se reverter numa vitória para o presidente Vladimir Putin, inicialmente um cético acerca do novo coronavírus.

Até o nome da vacina, o mesmo do primeiro satélite artificial, foi feito para lembrar o assombro do Ocidente ante ao feito espacial dos soviéticos em 1957.

Ginzburg defendeu os atalhos tomados pelos pesquisadores e o atraso na publicação internacional de dados.

“De acordo com a regulação russa, só é ético publicar no exterior após o registro doméstico”, disse. Ele voltou a dizer que a emergência da pandemia acelerou todo o processo, que normalmente demoraria muito mais. “Era necessário tomar ações regulatórias para vacinar civis”, disse Ginzburg .

Sobre o início da produção em massa, já anunciado por Moscou, ele afirmou que os resultados com um grupo tão pequeno de pacientes são suficientes porque a segurança do imunizante estaria certificada por ele usar o mesmo princípio das vacinas contra o ebola (já aprovada) e a Mers (doença semelhante à covid-19, que parou na fase pré-clínica).

Dimitriev manteve o tom usual de crítica política aos detratores da vacina ao comentar os resultados.

“Minha questão para a indústria farmacêutica é: vocês vão mostrar estudos de longo prazo a seus cidadãos? Eles não existem”, disse Dimitriev. “A publicação demonstrou a abertura da Rússia a um diálogo, bem como virou uma resposta aos céticos que criticavam a vacina irracionalmente. Na época de pandemia é extremamente importante usar uma plataforma com segurança provada”, afirmou.

Para compensar a evidente lacuna em torno da Sputnik V, ele apontou para 250 estudos prévios com o princípio da vacina citados no estudo na “Lancet”. Outras publicações, disse, virão: ainda este mês deverá ser publicado o resultado dos testes com primatas e hamsters.

Segundo o estudo desta sexta, não houve efeitos colaterais sérios nos testados, apenas eventos como dor no local da vacina (em 58% dos testados), febre (50%), dor de cabeça (42%), fraqueza (28%) e dor muscular (24%). Nas outras vacinas, afirmam os russos, efeitos adversos têm aparecido de 1% a 25% dos voluntários.

A resposta imune foi aferida tanto na produção de anticorpos neutralizantes quanto nas células T, afirma o texto. Ela foi obtida após duas injeções. Na primeira, o mais comum adenovírus Ad5 é aplicada e, 21 dias depois, uma dose de outra variante, o Ad26, é injetada.

Segundo o estudo, a imunização foi vista ao fim dos 42 dias. Acerca da dúvida sobre a eficácia do uso do Ad5, que é um vírus de alta circulação e causa resfriado, o diretor-adjunto para pesquisa do Gamaleia, Denis Lugonov, afirmou que a dose mais alta na primeira injeção superou a eventual imunidade que os indivíduos pudessem ter ao patógeno.

Essa é uma das dúvidas sobre a abordagem russa, que também ocorre apenas em uma dose do Ad5 na vacina chinesa a CanSino, já que a prevalência desse adenovírus varia de 40% a 80% entre populações e poderia inutilizar o esforço de atingir a resposta imune.

A Sputnik V será testada no Brasil. O estado do Paraná já assinou contrato com o fundo russo, mas ainda não há detalhes sobre o processo, e outras unidades federativas negociam o mesmo. Segundo Dimitriev, já são 40 os países interessados na vacina.

Além da vacina de Oxford, o país testa em larga escala a chinesa da Sinovac, em parceria com o governo paulista. Outros dois imunizantes (Pfizer e Sinopharm) estão em teste, mas sem contratos de produção ainda.