Desde que o presidente da República, Jair Bolsonaro, vetou a aprovação do projeto de lei 6.330/2019, que previa de forma equivocada a incorporação automática de medicamentos oncológicos no rol de cobertura dos planos de saúde, inúmeras manifestações surgiram questionando a medida, vindas de entidades médicas, indústria farmacêutica e do público em geral. É compreensível que haja reação negativa, pois estamos diante de um tema delicado, sensível e que toca a todos, que é a luta contra o câncer, doença que, segundo o INCA (Instituto Nacional do Câncer), terá 625 mil novos casos no Brasil a cada ano do triênio 2020-2022.

No entanto, é preciso tomar distanciamento crítico e imprimir racionalidade à análise do veto, que acertadamente preserva a governança do sistema de saúde, prioriza critérios técnicos e tem como resultado final a garantia da segurança dos tratamentos e dos próprios pacientes.

As falácias que circundam o debate são muitas. A primeira delas consiste em acusar os planos de saúde de se isentar da responsabilidade no tratamento do câncer, o que não é verdade. O setor é totalmente favorável à incorporação de tecnologias que melhorem a qualidade de vida dos pacientes e beneficiários, inclusive no que se refere à inclusão de medicamentos oncológicos orais. Entendemos que a incorporação é justa e necessária, desde que seja feita seguindo critérios técnicos que garantam a eficácia dos tratamentos e a segurança dos pacientes, o que não é o caso da lei em discussão.

Os defensores do projeto buscam sugerir que o veto priva os pacientes de câncer de tratamento pelos planos de saúde. Nada mais falso. As operadoras já cobrem todos os medicamentos oncológicos infusionais disponíveis no mercado e 58 produtos oncológicos de uso oral, dos quais 19 foram incorporados em abril deste ano, na mais recente rodada de atualização do rol. O problema do projeto de lei é que ele elimina a etapa de Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS), prática essencial de análise de segurança e custo-efetividade adotada nos melhores sistemas de saúde do mundo. A pretexto de beneficiar o paciente, o legislador suprimiu este procedimento fundamental.

Se a lei não fosse vetada, estaríamos prestes a incorporar 23 medicamentos oncológicos que não conseguiram comprovar segurança para os pacientes, assim como não demonstraram melhorias na qualidade ou expectativa de vida. Desse total, 12 já foram rejeitados pela ANS em sua mais recente análise e outros 9 foram alvo de sérias restrições por órgãos de avaliação em outros países, caso do Reino Unido (Nice) e do Canadá (CADTH). Logo, restam apenas dois produtos que seriam realmente passíveis de incorporação automática, mesmo assim ainda sujeitos a avaliação.

Outro acerto do veto foi evitar privilégios para os pacientes com câncer, que teriam acesso a medicamentos (que não comprovaram nenhum benefício), prejudicando os demais doentes, que continuariam sujeitos às regras gerais de assistência.

O veto à lei aprovada no Congresso mantém a atribuição legal e as prerrogativas da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) de avaliar técnica e criteriosamente os medicamentos, as tecnologias e os procedimentos a serem incorporados, em processos públicos com ampla participação e discussão popular, tal qual é feito nos países desenvolvidos.

Há que se observar ainda que o principal objetivo do projeto de lei também já está resolvido por outros meios. A ANS acelerou a incorporação de novos medicamentos com a Resolução Normativa n° 470, publicada em julho, que torna contínuo o processo de atualização do rol para qualquer tipo de nova tecnologia, sem precisar aguardar ciclos bianuais, como ocorria até agora. Ou seja, a lei perdeu objeto. Mas, se ela fosse sancionada, abriria indesejado precedente para a incorporação futura de remédios nem sempre adequados aos interesses dos pacientes, em claro atendimento aos interesses da indústria e de seus representantes declarados e ocultos.

O projeto de lei, por mais que possa expressar a boa intenção do legislador – e não há dúvidas sobre isso -, criaria benefício apenas aparente e, sobretudo, questionável para uma minoria de pacientes, mas impactaria de forma expressiva todos os 48 milhões de usuários de planos, seja com riscos graves à saúde ou por meio de aumentos futuros nas mensalidades dos planos, uma vez que todos os beneficiários seriam chamados a compartilhar os custos da incorporação indiscriminada de medicamentos de alto custo. Esses custos elevados afastariam famílias dos planos de saúde, sobrecarregando ainda mais o SUS.

Por todas estas razões, o veto presidencial ao projeto de lei n° 6.330/2019 é correto, adequado e deve ser mantido, com consequências positivas em termos de segurança, eficácia e acesso a todos os 48 milhões de brasileiros atendidos por planos de saúde no país – e sem qualquer prejuízo aos pacientes de câncer assistidos pelo sistema suplementar.

Sabemos que o combate ao câncer é uma questão sensível e carregada de grande de carga emocional. Mas, em se tratando de saúde, é importante que o debate seja baseado em fundamentos racionais e técnicos, para que a sociedade possa tomar as melhores decisões.

Diante destes pontos, restam algumas perguntas àqueles que tanto empenho colocam em ver aprovada esta medida que abriria portas para medicamentos muitas vezes ineficazes para os tratamentos dos beneficiários de planos de saúde. Por que os defensores do projeto 6.330 insistem em afirmar que a avaliação demora, sem citar que a ANS já publicou norma para acelerar o processo? Por que não dizer à população, especialmente aos pacientes – que são os mais afetados –, os motivos pelos quais alguns antineoplásicos foram rejeitados na avaliação da ANS? A quem de fato interessa a cobertura obrigatória de medicamentos cujo benefício não está comprovado? Estas perguntas merecem resposta. Que a racionalidade, o bom senso e o equilíbrio prevaleçam nesta discussão tão essencial para todos nós.