A consolidação da cirurgia ambulatorial como um pilar de eficiência, segurança e valor no ecossistema de saúde é um consenso global. No entanto, à medida que avançamos na expansão deste modelo, deparamo-nos com um gargalo crítico que ameaça a sustentabilidade do setor: a escassez de profissionais com o conjunto de habilidades específicas que este ambiente exige.

Este desafio não é meramente quantitativo; é uma lacuna de competência qualitativa, forjada ao longo de décadas por uma “mentalidade hospitalocêntrica” que ainda domina a formação médica e os programas de residência. Para cultivar a próxima geração de cirurgiões, anestesiologistas e enfermeiros, é imperativo reformular fundamentalmente o treinamento em saúde, alinhando-o às realidades clínicas e operacionais das Unidades de Cirurgia Ambulatorial (UCAs).

A lacuna de competências além do bisturi

O paradigma hospitalocêntrico tradicionalmente foca no manejo de casos complexos, longos períodos de internação e uma vasta infraestrutura de suporte. O ambiente de cirurgia ambulatorial, por outro lado, opera sob um modelo de alta performance, rotatividade rápida e recuperação acelerada, sem prejuízo da segurança do paciente.

Isso exige competências que transcendem a habilidade cirúrgica técnica:

  1. Avaliação e seleção rápida de pacientes: a capacidade de aplicar rigorosamente os critérios de elegibilidade é indispensável para a segurança em UCAs. Isso envolve uma profunda compreensão prática das classificações de risco, como as estabelecidas pela American Society of Anesthesiologists (ASA), focando primariamente em pacientes ASA I (saudáveis) e ASA II (doença sistêmica leve controlada), garantindo que o paciente possa ser gerenciado com segurança fora do ambiente hospitalar.
  2. Protocolos de recuperação rápida (ERAS): o profissional de UCA deve dominar técnicas anestésicas e cirúrgicas minimamente invasivas que reduzam a dor pós-operatória, minimizem o uso de opioides e previnam náuseas e vômitos pós-operatórios (NVPO), fatores críticos para uma alta segura no mesmo dia.
  3. Coordenação de equipe interdisciplinar: em um ambiente de alta rotatividade, a eficiência da equipe não é uma mera necessidade, é um requisito de segurança. O treinamento deve focar na comunicação de “ciclo fechado” e na gestão de fluxo (turnover) de sala, habilidades raramente enfatizadas em programas tradicionais.
  4. Otimização de processos: a cirurgia ambulatorial é um modelo de gestão enxuta (lean management) aplicado à saúde. Os profissionais devem ser treinados não apenas para executar procedimentos, mas para identificar e eliminar gargalos, otimizar o uso de suprimentos e gerenciar custos operacionais.

Um currículo ancorado no passado

Atualmente, a exposição à cirurgia ambulatorial durante a formação médica, de enfermagem e de gestão hospitalar é, muitas vezes, limitada ou suplementar. Programas de residência cirúrgica tendem a priorizar procedimentos de alta complexidade em regime de internação, relegando os casos ambulatoriais, por vezes, a residentes juniores, sem o devido foco nos aspectos gerenciais e de processo que definem o modelo, retroalimentando a “cultura hospitalocêntrica” ainda predominante no Brasil.

Embora cursos de especialização e pós-graduação existam, eles atuam como medidas corretivas para lacunas que não deveriam existir. Para uma mudança sistêmica, os princípios fundamentais da prática ambulatorial devem ser integrados aos currículos centrais de graduação e residência.

Módulos para um novo currículo

Uma reforma curricular eficaz deve incluir módulos dedicados e obrigatórios que reflitam a prática moderna. Um programa de residência cirúrgica ou anestesiológica alinhado ao futuro deveria incluir:

  • Rodízios estruturados em UCAs de alto volume: exposição mandatória a centros ambulatoriais que permitam ao residente participar ativamente não apenas do ato cirúrgico, mas de todo o ciclo do paciente — da avaliação pré-operatória e seleção de critérios (ASA I/II) até os protocolos de alta e acompanhamento pós-operatório.
  • Treinamento em anestesia para recuperação rápida: foco em bloqueios regionais, anestesia venosa total (TIVA) e estratégias multimodais de analgesia que são cruciais para o sucesso da UCA.
  • Princípios de gestão e eficiência: módulos sobre gestão de fluxo de pacientes, comunicação efetiva, controle de infecção em ambiente de alta rotatividade e fundamentos de gestão de negócios, preparando médicos-empreendedores e gestores capazes de liderar essas unidades com foco em qualidade e sustentabilidade financeira.

O papel das Sociedades: padronizando a excelência

A expansão da cirurgia ambulatorial sem padrões claros de formação e acreditação cria um risco regulatório e assistencial. É neste ponto que as sociedades devem assumir o protagonismo.

A Sociedade Brasileira de Cirurgia Ambulatorial (SOBRACAM) posiciona-se como principal liderança para catalisar essa transformação. Seguindo o exemplo de entidades internacionais, como a International Association for Ambulatory Surgery (IAAS), que há muito defende padrões educacionais específicos, a SOBRACAM tem a responsabilidade de desenvolver e advogar por um padrão nacional de operação e credenciamento para Unidades Cirúrgicas Ambulatoriais e, crucialmente, de certificação para os profissionais que neles atuam.

Além disto a Sociedade tem realizado um papel fundamental no setor público, para a criação e atualização do arcabouço regulatório, que irá permitir maior segurança, padronização e crescimento sustentável da cirurgia ambulatorial no Brasil. A publicação da Política Nacional de Cirurgia Ambulatorial foi um marco importante neste sentido e tem pautado importantes discussões sobre o tema junto ao setor público.

Cultivar a próxima geração de especialistas em cirurgia ambulatorial não é apenas um desafio acadêmico; é um pilar estratégico para a sustentabilidade e a correta expansão deste modelo no Brasil. Endereçar corretamente as barreiras da mentalidade e da formação hospitalocêntrica é o primeiro passo para construir um legado duradouro de qualidade, segurança e eficiência no cuidado cirúrgico.