O sistema de saúde brasileiro em sua pluralidade combina o SUS — público e gratuito — com uma ampla rede privada regulada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Essa coexistência entre o direito universal e o consumo voluntário é o traço estrutural e um desafio do modelo. A coordenação entre os subsistemas ainda é limitada, o que reforça a necessidade de uma regulação sólida, técnica e previsível — capaz de garantir segurança para o cidadão, estabilidade para o mercado e credibilidade para o Estado.
A saúde suplementar atende cerca de 50 milhões de pessoas e influencia toda a cadeia de prestação de serviços, inovação e financiamento. Ela nasce como escolha, mas opera em um sistema de direitos. É mercado e, ao mesmo tempo, política pública regulada. Quando a regulação é frágil, o equilíbrio se rompe: o cidadão perde previsibilidade, o mercado perde credibilidade e o Estado perde controle. Fortalecer a ANS é, portanto, reconhecer que a pluralidade do sistema de saúde brasileiro não é uma fragilidade, mas um arranjo que exige governança e clareza de papéis
O envelhecimento acelerado da população brasileira tornou-se um novo determinante econômico da saúde. O número de idosos com plano de saúde cresceu 33% em uma década, enquanto o de jovens caiu 11%. Essa transição pressiona o modelo de mutualismo — em que os jovens financiam o cuidado dos mais velhos — e eleva os custos assistenciais. Uma regulação moderna precisa lidar com essa mudança, promovendo prevenção, gestão de doenças crônicas e modelos atuariais de longo prazo. É papel da ANS conduzir esse debate como política de Estado, e não como resposta emergencial a crises setoriais.
A regulação da saúde suplementar tem convivido com um excesso de iniciativas legislativas fragmentadas, muitas vezes sem avaliação técnica ou estudo de impacto. Centenas de projetos de lei alteram a Lei nº 9.656/98, gerando insegurança jurídica e descontinuidade regulatória. O caso da Lei nº 14.454/2022, que tornou o rol da ANS exemplificativo, é emblemático: foi aprovada em poucos meses, invertendo anos de debate técnico e ampliando o campo da judicialização. Hoje, o Brasil acumula cerca de 570 mil ações judiciais em saúde — mais de 200 mil apenas na saúde suplementar —, a maioria decidida sem parecer técnico. Fortalecer a ANS é devolver à regulação o espaço técnico de decisão e conter o ciclo de improvisações legislativas que desorganizam o sistema e prejudicam o cidadão.
A incorporação de novas tecnologias tem avançado em ritmo acelerado, nem sempre acompanhado pela devida avaliação de efetividade clínica e custo-efetividade. O Brasil possui prazos de análise significativamente mais curtos que a média internacional, o que amplia o acesso, mas também aumenta o risco de decisões sem base consolidada em evidências. Estudos indicam que menos de um terço das drogas aprovadas por agências como FDA e EMA apresenta ganho clínico comprovado — o que reforça a necessidade de prudência regulatória. Casos como o do Zolgensma, cujo tratamento ultrapassa R$ 7,6 milhões por dose, evidenciam o desafio de equilibrar inovação e sustentabilidade.
A ANS tem o papel de consolidar um processo de incorporação baseado em evidências, que una agilidade, rigor técnico e sustentabilidade, com mecanismos de compartilhamento de risco e monitoramento de resultados, garantindo que cada nova tecnologia traga valor real ao paciente e previsibilidade ao sistema.
Estudos do IPEA e do IDP mostram que boa parte das disputas entre consumidores e operadoras decorre de expectativas criadas no momento da venda — especialmente sobre rede, reembolso e cobertura. Planos prometem uma rede ampla, mas sofrem descredenciamentos frequentes, gerando frustração e litígio. É necessário rever as estratégias comerciais, padronizar a comunicação com o consumidor e garantir integridade nas relações de consumo. A ANS pode exercer papel decisivo nesse processo, estabelecendo parâmetros de transparência e coerência entre o que é ofertado e o que é efetivamente entregue.
O desafio financeiro na gestão em saúde não se resume ao equilíbrio entre receitas e despesas. A carga tributária sobre o setor — que pode representar até 30% do custo final — encarece planos e serviços, restringe o acesso e penaliza a inovação e o consumidor. É papel da ANS mensurar esses impactos e contribuir com dados e evidências para a formulação de políticas fiscais coerentes, articulando-se com o Ministério da Fazenda e o Ministério da Saúde. Sem justiça fiscal e previsibilidade, não há sustentabilidade possível. E este ponto não foi endereçado na aprovação da reforma tributária atual.
Fortalecer a ANS é proteger o cidadão, dar previsibilidade ao mercado e reconstruir a confiança em um sistema que lida com o bem mais valioso da sociedade: a vida. O Ministério da Saúde precisa restabelecer o diálogo técnico com o setor e consolidar a agência como eixo de coordenação entre Estado, mercado e cidadão. Uma ANS autônoma, técnica e estável garante previsibilidade para operadoras, confiança para o governo e proteção para quem mais importa: o usuário de planos de saúde.