A morte dá lucro. Antecipada então, mais ainda. Se for a morte de quem só custa e rende pouco, melhor nem comentar. Claro que no começo de nossas vidas todos produzimos e aportamos muito para a sociedade. A fase produtiva começa seu declínio quando chegam as doenças. “La vecchiaia è bruta”, dizem os italianos.

Claro que “não é” sempre assim, mas é o que frequentemente ocorre, na leitura atuarial estatística do fenômeno. Já nos anos 1940, Getúlio Vargas criou o ISSB (Instituto dos Serviços Sociais do Brasil), para tentar unificar a previdência e dar gestão estatal aos dinheiros privados, quando sequestrados das poupanças individuais por instituições que prometiam o “elixir da vida saudável” até seus últimos dias de vida.

A mensagem dos institutos era: “deixem conosco o seu dinheiro, que garantiremos sua velhice saudável, pois juntos somos mais fortes”. A estratégia de venda destes primeiros planos é o discurso do mutualismo (uma união de esforços entre os próprios segurados, que assumiriam, sob a coordenação do segurador, os riscos em saúde e previdência).

O relatório Beveridge de 1942 mostra ao mundo que a doença dos pobres pode chegar nos ricos, e assim a saúde passa a ser vista como um problema de orçamento público. Em maio de 1945, pelo artigo 33 do Decreto-Lei do ISSB, determinou Getúlio:

nenhuma iniciativa que importe em criação ou reforma de serviços, alteração de planos de benefícios ou contribuições, ampliação de quadro de pessoal ou aumento dos respectivos vencimentos, aquisição ou construção de imóveis, assim como aquisição de móveis e utensílios, impressos e material de expediente, salvo os estritamente necessários à manutenção dos atuais serviços” poderá ser promovida sem autorização governamental.

Vejamos hoje o que Getúlio já havia percebido lá no passado: “os empresários da saúde privada, uma vez perdendo a gestão exclusiva dos ingressos financeiros, poderiam forçar excedentes de capital para abusar dos bens das respectivas entidades, em prejuízo de um bom serviço para os segurados”.

As antigas Caixas e Institutos de aposentadoria e pensão tinham até mesmo seus próprios hospitais, que atraíam enxames de segurados, daí seu alto potencial de captação de poupança popular. E novamente psicografando Getúlio: “se vocês vão operar como bancos, captando e gerindo as economias das pessoas, o poder público terá que aprovar os serviços que vocês irão devolver aos consumidores segurados em garantia de uma velhice saudável”.

Os serviços médicos evoluem dia a dia, e seria um contrassenso permitir que alguém receba por anos pagamentos dos segurados para ao final dizer que “o tratamento médico mais moderno não estava previsto na origem quando assinamos o contrato décadas atrás”.

E vem daí a lógica de que certas atividades “privadas” são de interesse público e precisam de autorização estatal para funcionar e seguir operando.  O direito as qualifica juridicamente como “públicas não exclusivamente estatais” para que o poder público as possa fornecer ou regular.

Educação e saúde são inegavelmente atividades de alto impacto para a evolução da sociedade. Ou bem o Estado as fornece ou as regula e controla. O que se pretende evitar é que o lucro (e somente o lucro) delimite a atuação “em favor” da saúde e da educação a que todos temos direito.

Foquemos nos contratos de saúde

Tivemos a oportunidade de discutir tais relações jurídicas durante as “Jornadas de Direito da Saúde”, entre os dias 13 e 14 de junho de 2024, no CJF  (Conselho da Justiça Federal) em Brasília. Ali estavam importantes representantes de todos os setores, público e privado, de prestação e regulação de serviços de saúde.

Em um clima de aberto debate e de apresentação de variadas visões, diversas súmulas de entendimento foram aprovadas. Claro que houve pressão — por parte dos representantes dos planos de saúde — para derrubar inúmeros enunciados que replicavam direitos do consumidor em serviços de saúde. A maioria destes enunciados consumeristas foi aprovada por mais da metade dos votos, mas derrubada pelo quórum qualificado de aprovação final exigido pelo regramento da jornada.

Antecipo aqui alguns antecedentes de raciocínio, para demonstrar de onde pretendo partir. Os contratos “privados” (ou “quase-privados”) em saúde são qualificados como “contratos existenciais ou de subsistência”. Não são meros “contratos de lucro”, no sentido de que um escolhe algo certo e o outro paga o preço combinado. São contratos existenciais, pois em saúde o que está em jogo é viver melhor e por mais tempo.

Quem contrata um plano de saúde concordaria até em pagar o dobro se a operadora pudesse garantir que irá viver até os 100 anos, sem nunca ter que ir ao médico nem ao hospital. Está certíssimo René Leriche quando diz que “saúde é a vida no silêncio dos órgãos”. Seria fantástico que nossos planos médicos e hospitalares fossem de “garantia de saúde”, e não “planos de gestão das doenças” (que visam acalentar e silenciar nossos órgãos, quando apitam as mais diversas dores). Ninguém contrata um plano de saúde achando bom ficar doente.

Claro que os gestores do plano prefeririam também nada ter que fazer. Mas não podem ficar parados, pois quanto antes se identifica uma doença, mais rapidamente pode ser extirpada e menores serão os custos em saúde. Uma cadeia infinita de revisões e check-ups anuais é colocada em curso, para que os custos dos casos graves sejam mitigados nas fases iniciais. De vez em quando um caso raro fura esse bloqueio e lá vem um alto custo a ser suportado. No perfil do segurado, as operadoras não podem cobrar mais caro de um cliente que optou por ser fumante e sedentário (o que certamente trará maiores custos para todos). Tais exemplos servem para demonstrar por que tais contratos não são comutativos, mas sim aleatórios.

Nos contratos comutativos praticamente não existe o acaso: as prestações são conhecidas, alguém paga e o vendedor entrega. Já nos aleatórios, o acaso está sempre presente. Nos contratos de saúde, em sua condição de contratos aleatórios, a incerteza sobre o que realmente será fornecido no futuro é da essência do negócio.

Cálculos atuariais

Para tentar diminuir essa incerteza, toda sorte de cálculos atuariais precisa ser realizada. Por extrapolação estatística se sabe o que vai ocorrer. O Judiciário e a regulação estatal se encarregam de apontar para onde precisa evoluir o melhor serviço. Novos custos surgem e a massa de usuários privados (que vem crescendo após a pandemia) tem dado conta de acomodar tais custos sem tisnar nos lucros empresariais.

Folha de São Paulo publicou, em junho de 2024, que os planos de saúde tiveram R$ 3,3 bilhões de lucro no primeiro trimestre de 2024 (um crescimento de 343% em relação ao mesmo período do ano passado). Lucro é bom e é importante sim. Ele permite que valores sejam reinvestidos, que haja mais prevenção e menos doenças. Claro que a fome por dinheiro (que os romanos qualificavam como “auri sacra fames”) é infinita, e vários mecanismos de redução de custos são colocados em prática pelas administrações privadas e suas metas. Até as crianças entendem como isso funciona.

Por exemplo: se um plano de saúde cria embaraços para promover o reembolso de exames, consultas ou procedimentos, ele sabe imediatamente (por meio de cálculos atuariais estatísticos) quanto vai deixar de desembolsar.

Se exige novas carências de quem já as cumpriu (no exercício do direito de portabilidade do plano de saúde) poderá calcular quantos irão ficar sem atendimento e quanto isso vai economizar. Se o plano optar por rescindir unilateralmente com uma massa de segurados (escondidos atrás de um CNPJ ficcional), pois estão custando mais do que arrecadam, nem precisamos de muita estatística para saber quanto os gestores do plano poderão deixar de desembolsar.

Tais castrações de direitos, apoiadas em um contrato existencial coletivo, transmudam-se imediatamente em salários altos, metas, bônus e ao final distribuição ampliada de dividendos (os lucros estão aí para mostrar isso). O discurso do mutualismo, apoiado em contabilidade criativa, justifica mas não explica todas as diluições dos custos que realiza.

Tudo isso para dizer que o mutualismo é um discurso bonito, e nada muito mais do que isso. Os planos não podem ter com seus segurados uma parceria “ovos com bacon”, em que o paciente seja sempre o porco (que precisa dar um pedaço do lombo para a relação permanecer ativa, ao passo que o plano-galinha põe um ovo, de vez em quando, e sai vivamente cacarejando).

Da mesma forma são falaciosos os argumentos “ad terrorem” de que “os planos de saúde estão falindo” ou de que “os ricos terão de pagar milhares de reais a mais para ter acesso à saúde digna” (pois o SUS — que faz quase 90% dos transplantes no Brasil — “estaria quebrado” ou teria “baixa qualidade”, na visão dos gestores privados).

A pandemia mostrou que a gestão simétrica do SUS foi o que nos salvou a todos. Não é preciso muito esforço para entender que basta proibir a venda privada de carros e todos os ônibus de linha terão ar-condicionado, wifi e banheiro em questão de semanas.

A essência dos contratos existenciais em saúde é ampliar a sobrevida de quem os contrata (o como e o quando sempre serão variáveis caso a caso). Se depois de bem cumprida esta finalidade, houver um lucro saudável — que incentive mais empresários a entrarem neste negócio —, teremos cumprido a função social dos contratos e das empresas.

Neste cenário, o poder público aí está para garantir que a morte antecipada (e a castração de direitos) não seja um meio de ampliação de lucros em desfavor da dignidade da pessoa humana. Se os prestadores buscarem reduzir o serviço-base, esse contrato existencial é nulo pois ferirá a dignidade da pessoa humana.

Regulação estatal

A regulação estatal tem cabimento porque estamos diante de uma relação estatutária, que envolve um “status” jurídico vivencial. O substrato destas relações contratuais é a ideia-força defendida por Alfred Fouillée há 150 anos: “Quem diz contratual, diz justo”. O contrato de saúde, em nossa visão, não pode ser uma pegadinha.

O Código de Comércio francês prevê o “abuso de bens da sociedade” (ABS) como infração criminal, com pena de até cinco anos de prisão e multa de 375 mil euros (categoria delitiva esta que vai muito além do que prevê o art. 187 de nosso Código Civil brasileiro). Pelo sistema francês, abusa dos bens da companhia quem usa seu conhecimento pessoal sobre os negócios para fabricar créditos ou favores pessoais de modo direto ou indireto para si mesmo.

Perceba-se que a infração ABS na França se refere a bens de empresas integralmente privadas. Aqui estamos debatendo entidades reguladas pelo poder público, que estão submetidas a alteração externa do seu clausulado contratual (como por exemplo pelo aditamento do rol de procedimentos, por ser um rol dinâmico ou exemplificativo se se preferir).

Se as entidades de saúde continuarem castrando o acesso a direitos contratuais, a fiscalização de seus lucros e práticas poderá conduzir à produção de uma “lei brasileira de abuso de bens da companhia”, semelhante ao sistema de outros países (para além da gestão temerária de instituição financeira já prevista em nossa lei de 1986).

Temos que aproveitar o momento de debates abertos para achar o meio-termo ideal entre lucros e bons serviços de saúde, pois esse tema diz mais diretamente sobre nós mesmos do que sobre as empresas privadas gestoras da saúde. Estamos falando da saúde de todos, e o aprimoramento da regulação precisa ocorrer em favor de todos os lados, com a máxima preservação da dignidade e da saúde coletiva.