Em quase três anos da vigência da Lei 14.454/2022, o rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) continua sendo objeto de importantes discussões, sobretudo em razão da publicação desta norma e de incertezas advindas dela.

Como resultado, os seus desdobramentos impactam significativamente o ecossistema de saúde suplementar, seja no âmbito da ANS, das operadoras e dos próprios beneficiários de planos de saúde, seja no âmbito judicial ou legislativo.

Contexto

A nova lei, que entrou em vigor em 22 de setembro de 2022, alterou a Lei dos Planos de Saúde (9.656/1998), e determinou, dentre outras disposições, que as operadoras de planos de saúde devem cobrir tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontólogo assistente que não estejam previstos no Rol, desde que:

Haja comprovação da eficácia do tratamento ou procedimento com base em evidências científicas e plano terapêutico;

Ou haja recomendações por parte da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde, ou de, no mínimo, um órgão de avaliação de tecnologias em saúde de renome internacional, desde que sejam também aprovadas para seus nacionais.

A aprovação da nova Lei do Rol foi uma resposta rápida do poder Legislativo frente ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em julgamento finalizado em 8 de junho de 2022, que havia definido, dentre outras teses, que o rol era, em regra, taxativo, não estando as operadoras obrigadas a cobrir tratamentos não previstos nele.

No período entre a publicação da Lei dos Planos de Saúde e a decisão do STJ, havia grande divergência se as operadoras de planos de saúde deveriam ou não cobrir tratamentos ou procedimentos fora do rol. Apesar de a nova Lei ter trazido maior definição quanto ao tema, ainda há algumas incertezas que têm gerado desdobramentos importantes desde a vigência da norma.

Desdobramentos

A nova Lei do Rol apresenta conceitos muito amplos, como os de “eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico” e de “órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional”. A ausência de critérios claros, objetivos e previsíveis dificultam a efetividade da aplicação da nova lei pelas operadoras e evidenciam a necessidade de alteração e/ou de regulamentação da norma.

A ANS — pautada em um parecer publicado pela Advocacia Geral da União — entende que não foi conferida à agência competência para disciplinar questões relativas ao preenchimento dos requisitos previstos na nova Lei do Rol, especialmente pelos dispositivos da norma não preverem atribuição expressa nesse sentido. Com efeito, entende que lhe carece competência para fiscalizar ativamente as operadoras de planos de saúde em relação ao cumprimento dos requisitos dispostos na nova lei.

As operadoras e outros entes atuantes no setor de saúde suplementar, por sua vez, têm como impacto das incertezas trazidas pela nova lei uma possível transferência de responsabilidade para decidirem sobre o tema. E isso poderia representar riscos não apenas à segurança econômico-financeiro das operadoras — uma vez que não é possível ter uma previsibilidade de quais tratamentos ou procedimentos devem ou não ser cobertos — como também à segurança dos pacientes — uma vez que os procedimentos e tratamentos fora do rol não passaram e não passarão pelo processo de Avaliação de Tecnologia em Saúde realizado pela ANS.

Sob este cenário, os beneficiários de planos de saúde, diante da negativa de cobertura de algum tratamento ou procedimento fora do rol, têm recorrido ao ajuizamento de ações judiciais para pleitear coberturas.

Curioso notar, contudo, que a esse respeito, o Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) e o Núcleo de Direito, Tecnologia e Jurimetria da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) divulgaram pesquisa inédita que revelou que não houve impactos significativos oriundos de mudanças regulatórias da ANS, do julgamento do STJ ou da nova Lei do Rol sobre o volume de judicialização contra a saúde suplementar no estado de São Paulo. Em outras palavras, este estudo demonstrou que não houve crescimento ou queda no número de demandas ajuizadas especificamente em razão da norma.

Por outro lado, dados relativos ao quarto trimestre de 2023, divulgados pela ANS, indicam que, ao longo dos últimos anos, houve um aumento constante das reclamações tratadas por meio de Notificação de Intermediação Preliminar (NIP). As demandas de natureza assistencial têm tido um peso cada vez mais relevante, representando 82%, nos primeiros três meses de 2024, do total de reclamações NIP cadastradas no período.

Ainda, dados recentes publicados pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) indicam que o número de processos movidos contra operadoras chegou a 234,1 mil em 2023, isto é, 32,8% maior do que as demandas judiciais de 2022. As operadoras dizem que o aumento expressivo no número de ações está relacionado à aprovação da nova Lei do Rol.

Por isso, o rol continua a ser debatido e sendo alvo de disputas, inclusive no âmbito do (i) STJ, no julgamento de três recursos [1] que versavam sobre o Rol, transitados em julgado em 3 de junho 2024, em que se decidiu que os respectivos autores faziam jus à cobertura extra Rol pretendida, com base na lógica trazida pela nova Lei dos Planos de Saúde e no Enunciado nº 109 das Jornadas de Direito da Saúde, ocorridas sob a coordenação do CNJ; (ii) Supremo Tribunal Federal (STF), onde a constitucionalidade da nova Lei do Rol é questionada por operadoras de planos de saúde, no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (7.265).

Mais recentemente, os debates alcançaram a Câmara dos Deputados, em razão de cancelamentos recentes de planos de saúde por parte de operadoras. Tendo isso em vista, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), fez um acordo verbal com operadoras para suspender os cancelamentos unilaterais. Em contrapartida, as operadoras aguardam, dentre outras medidas, um avanço no Projeto de Lei dos Planos de Saúde (PL 7.419/2006), que segue parado, a fim de que temas importantes do setor sejam melhor endereçados.

Conclusão

De modo geral, os dados mais recentes indicam que, do ponto de vista prático, a nova Lei do Rol não conseguiu emplacar plenamente seu objetivo até o momento, isto é, a cobertura ampliada e facilitada a eventos e procedimentos em saúde não previstos no Rol.

Com efeito, o grande desafio da saúde suplementar permanece na busca de soluções que garantam o acesso à saúde e, ao mesmo tempo, a sustentabilidade do ecossistema.

Independentemente do tipo de solução jurídica que se tente implementar por meio dos poderes legislativo, administrativo ou judiciário, fato é que imprescindível ainda se faz a definição de critérios claros e objetivos que permitam a previsibilidade do que se deve ser garantido, de que forma e em qual extensão.

Dada a relevância do tema, a expectativa é a de que esta pauta tenha novos desdobramentos no campo jurídico ainda este ano.