O Supremo Tribunal Federal, na última semana, formou maioria — via plenário virtual — para, com base no voto dos ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, estabelecer parâmetros mais restritivos para a concessão de fármacos não incorporados ao SUS via decisão judicial.

O julgamento, feito de forma conjunta com o Tema 1.234 relativo à legitimidade passiva em processos judiciais que envolvem a dispensação de fármacos não incorporados ao SUS, foi suspenso pelo pedido de vista do ministro Nunes Marques de modo que, ainda, não há uma decisão definitiva do Plenário do STF e, nem mesmo, a fixação de uma tese.

A tese de julgamento proposta pelo voto-conjunto, acompanhado por outros sete ministros, traz importante mudança nas diretrizes a serem observadas pelo Poder Judiciário quando da concessão de fármacos não incorporados, pois, além de estipular que — como regra geral — os fármacos não incorporados não devem ser fornecidos pelo poder público, dispõe que, para que se obrigue a concessão excepcional, é fundamental que, além da negativa na via administrativa, haja demonstração, pelo autor, da ilegalidade do ato de não incorporação do medicamento pela Conitec, caso este tenha sido analisado e não recomendado.

O que se vê, aqui, é a afirmação de que nos casos em que o fármaco não foi incorporado ao SUS a partir de uma recomendação da Conitec pela não incorporação — ou seja, não ter sido incorporado a partir do processo de Avaliação de Tecnologias em Saúde estabelecido por lei — apenas poderá ser o poder público obrigado a concedê-lo se, e somente se, demonstrada a ilegalidade do ato de não incorporação.

Racionalização, deferência à ATS e crise do Direito

A fixação da tese ainda vai mais longe ao frisar que, sob pena de nulidade da decisão judicial por vício de fundamentação, nos termos do artigo 489, §1º, incisos V e VI e artigo 928, inciso III, §1º, ambos do CPC, deve o juiz analisar o ato administrativo de não incorporação pela Conitec, sendo vedado fundamentar a sua decisão unicamente em prescrição médica trazida pelo autor da ação.

Tais parâmetros têm a pretensão de trazer mudança significativa sobre como o Judiciário julga os pleitos de dispensação de fármacos não incorporados ao SUS, inclusive, em obra publicada ainda neste ano sob o título O Judiciário e a Incorporação de Tecnologias em Saúde pude analisar que:

“os julgadores não se preocupam em, a partir de uma análise criteriosa das recomendações da Conitec, demonstrar que estas não seguem os critérios estabelecidos pela Lei Federal 12.401/11 (…) ignora a existência do sistema de ATS instituído pelo legislador e devidamente executado pela Administração Pública e, ao entender que a recomendação médica deve prevalecer, anula os esforços empreendidos para a análise de incorporação de tecnologias (…) inexiste deferência do Poder Judiciário com a política pública estabelecida, havendo seu afastamento sem o ônus argumentativo suficiente a desnudar a criteriologia constitucional utilizado pelos julgados para assim fazê-lo.” [1]

A obra, a partir da análise de decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo sobre casos que tramitaram na comarca de Ribeirão Preto entre 2020 e 2022, selecionando apenas casos em que havia recomendação negativa da Conitec para a incorporação do fármaco pleiteado, conclui que os julgadores simplesmente ignoram a existência de um sistema de ATS, sendo que estas “não afastam a aplicação da Lei Federal 12.401/11, visto que vão mais longe, já que ignoram totalmente sua existência, tendo em vista que os dispositivos relativos à avaliação de tecnologias e à não inclusão dos fármacos não incorporados no conceito de integralidade não são nem sequer citados nas decisões” [2].

É certo que a decisão do STF, se assim se mantiver, representa importante passo para a racionalização da dispensação de fármacos no âmbito do SUS e, também, notória deferência do Poder Judiciário ao sistema de Avaliação de Tecnologias em Saúde, mas é uma pena que seja necessária uma decisão judicial da corte para tanto, sendo esta uma demonstração sintomática da crise do Direito.

Isso porque a própria lei já obrigava o Judiciário a respeitar as decisões proveniente do sistema de Avaliação de Tecnologias em Saúde, afinal o artigo 19-M da Lei Federal 8.080/90, incluído pela Lei Federal 12.401/11, é claro ao dispor que a assistência terapêutica integral inclui, apenas, os medicamentos incorporados ao SUS e conforme as diretrizes terapêuticas do Sistema, se houver.

Inclusive, a mesma lei já previa como se dá a incorporação de fármacos ao SUS, estruturando o sistema de Avaliação de Tecnologias em Saúde a partir da Conitec, sendo que – por certo – já existia a obrigação de o Judiciário observar tais parâmetros quando da análise dos processos. Ou não? Em um sistema como o nosso, não há a opção subjetiva do julgador para, em um juízo de vontade, aplicar ou não a lei, como exemplifica o professor Georges Abboud:

“Não há opção em aplicar ou não a lei. Ela somente pro ser desaplicada caso seja vislumbrada a sua inconstitucionalidade. Outrossim, não há argumento fundado em precedente que possa derrocar a incidência da lei.” [3]

Tradição interpretativa

Caberia nos perguntarmos qual é o nível da crise do Direito quando precisamos celebrar que o Supremo tenha de dizer que é dever dos juízes observarem a lei, afinal, já não existia a possibilidade de afastar as decisões de não incorporação do SUS e — ainda sim — obrigar o poder público ao fornecimento de fármacos se não fosse demonstrado que tal decisão está eivada de ilegalidade (pela inobservância dos critérios objetivos com base na medicina baseada em evidências estabelecidos pela própria lei, por exemplo), mas isso era, e ainda é, reiteradamente feito pelo Judiciário. Há o que comemorar?

É certo que tais decisões — em contrariedade aos parâmetros estabelecidos pela lei para incorporação de tecnologias no SUS — são reflexo do estado de natureza interpretativo que paira sobre o Direito brasileiro em que, nas palavras de Streck, “cada intérprete parte de um grau zero de sentido. Cada intérprete reina nos seus ‘domínios de sentido’ com seus próprios métodos, metáforas, metonímias, justificativas, etc. Os sentidos “lhe pertencem como se estes estivessem a sua disposição” [4]em que o julgador primeiro decide, depois fundamenta — como se tais atos fossem divisíveis — e, portanto, molda os argumentos para justificar — e não fundamentar — suas decisões tanto que, em casos como os aqui tratados, simplesmente se esquece da lei.

A lei já existia, a disposição já estava lá e deveria ser observada, assim como as recomendações da Conitec que dela derivam, entretanto os julgadores resolveram por bem esquecê-la, com eventual decisão do Supremo nos termos do voto dos ministros Gilmar Mendes e Barroso haverá alguma mudança? O pessimismo infelizmente prevalece. Explico.

O Brasil adotou um “sistema de precedentes”, se é que assim se pode dizer, que é, deveras, particular, já que cria a ideia de que algumas decisões já nascem como precedentes — por própria escolha do legislador acerca de onde provêm tais decisões e em que âmbito processual são proferidas — com a pretensão de que tais decisões resultem em enunciados assertóricos que trazem consigo todas as hipóteses de aplicação. O sistema é falho, por vício congênito.

O Direito não é indeterminado, não é correto imaginar que os textos legais não tenham por si, nenhum conteúdo de significação e que caiba ao julgador preenche-lo ao seu bel-prazer, como hoje está admitido na atual quadra da interpretação jurídica brasileira.

Pensar, ainda, que a mesma tradição interpretativa que entende que cabe ao intérprete criar o sentido que há nos textos e não partir destes para atribuir sentido respeitará, no ato de julgar, uma tese que ostenta regra geral e abstrata — reafirmando, inclusive, o que já estava previsto em lei e era desrespeitado — é depositar muita esperança em um sistema que já dá sinais de que assim não funciona.

Afinal de contas, tais casos se resumem — em demasia — em decisões que liminarmente concedem integralmente o bem da vida pleiteado e que pela própria jurisprudência defensiva dos tribunais (Súmula 735/STF) apenas ensejará a análise do desrespeito ao chamado “precedente vinculante” quando do esgotamento da instância ordinária (artigo 988, §6º, inciso II do CPC), o que será inócuo.

De forma mais simples: se havia decisões em que os julgadores voluntariamente ignoravam a existência da lei, o que os impede de ignorar também eventual “precedente vinculante” que apenas frise a premissa óbvia de que a lei deve ser respeitada?