A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) prevê discutir em reunião nesta sexta-feira (27/9)  dois temas que podem representar uma profunda mudança no mercado de planos de saúde.

O primeiro abre caminho para ampliar o reajuste das mensalidades de contratos antigos, por meio da mudança dos critérios da revisão técnica. Esse mecanismo permite aumentos diferenciados das mensalidades de contratos no caso de desequilíbrio econômico.

Pela proposta, empresas poderiam lançar mão do recurso com maior facilidade, desde que algumas condicionantes fossem aceitas.

O JOTA apurou haver ainda pontos em discordância sobre as condicionantes. Há, portanto, possibilidade de que a discussão seja adiada para uma próxima reunião de diretores da agência.

O segundo ponto em pauta da reunião, não menos impactante, trata da mudança das regras dos ativos garantidores, recursos que empresas devem apresentar como lastro para honrar seus compromissos.

A proposta amplia de 20% para 50% a possibilidade de que essa garantia seja feita por meio de imóveis hospitalares.

Apresentada pelo diretor da Diretoria de Normas e Habilitação das Operadoras (DIOPE), Jorge Aquino, a sugestão não foi precedida de uma Análise de Impacto Regulatório, sob a justificativa de que ela não traria prejuízos para o setor.

Para prestadores de serviços de planos, contudo, a proposta vai muito além de uma mera mudança percentual no lastro das operadoras. “Isso certamente provocará prejuízo para as prestadoras. Vai nos deixar numa situação muito delicada”, afirmou ao JOTA  Breno Monteiro, presidente  da Confederação Nacional de Saúde (CNSaúde), entidade que representa estabelecimentos de serviços de saúde no país, como hospitais, clínicas, casas de saúde, laboratórios  e serviços de diagnóstico.

“Esperamos que a proposta não seja aprovada, levando-se em conta os reflexos negativos que ela traria”, completou.

Atrasos no pagamento

Monteiro observa que as operadoras se valem cada vez mais da prática de atrasar o pagamento pelos serviços prestados e de questionar as contas apresentadas pelas operadoras.

Uma mudança na regra sobre ativos garantidores, afirma, tem potencial de incentivar ainda mais esse comportamento, colocando em risco a sustentabilidade de hospitais, clínicas e demais empresas do setor.

Dívida confortável

Quando uma operadora atrasa ou questiona uma dívida do prestador, normalmente não há um ônus. Os pagamentos, mesmo quando realizados tardiamente, são feitos geralmente sem cobrança de multas.  Para as operadoras, portanto, essa é uma dívida, em última análise, “confortável”.

Pelas regras da ANS, a dívida deve ser garantida por um valor equivalente. Os recursos bloqueados devem ser formados em 80% por ativos financeiros e até 20% por imóveis assistenciais. Com a mudança proposta, imóveis assistenciais poderão também chegar ao mesmo percentual, dando espaço para contrair e alongar pagamento de dívidas.

“Isso trará mais liquidez para as operadoras, mas a que preço para a saúde suplementar?”, questionou o presidente da CNSaúde.

Monteiro acredita que a movimentação aumentará a insegurança não apenas para prestadoras de serviços como também para consumidores. “Haverá um estrangulamento nos serviços.” Ele considera ainda que o modelo beneficiaria empresas que têm o modelo verticalizado, no qual operadoras têm rede própria de assistência.

Liquidez

O diretor-executivo da Associação Nacional de Hospitais Privados, Antônio Britto, avalia que uma eventual ampliação da liquidez para operadoras de saúde deveria vir acompanhada de medidas semelhantes, que também pudessem garantir a liquidez de hospitais.

“Hospitais sofrem de um aumento inédito do questionamento das cobranças e do aumento de prazos de pagamento”, observou Britto.

A CNSaúde estima que R$ 63 bilhões em aplicações financeiras das operadoras estejam vinculadas a ativos garantidores das empresas. Caso a regra seja aprovada hoje, haveria potencial de pelo menos R$ 30 bilhões desses recursos sejam  desbloqueados, para substituição por imóveis.

O problema, contudo, é que esses imóveis não têm liquidez.  “Uma mudança como essa traria instabilidade ainda maior para os clientes, uma vez que serviços podem ser reduzidos. Traria benefícios apenas para as operadoras”, afirma a advogada Renata Vilhena, do escritório Vilhena Silva Advogados.

O diretor da ANS, Jorge Aquino, em reunião de diretoria realizada em maio afirmou que a alteração poderia trazer maior sustentabilidade para o setor.

Ano passado, empresas se queixavam de apresentar um resultado operacional ruim, provocado sobretudo pelo aumento do uso de planos pelos consumidores, numa espécie de efeito rebote da covid-19.

Esse cenário, contudo, mudou. Desde o início do ano, como o JOTA já havia indicado a seus assinantes, operadoras apresentam sinais de recuperação. E isso se confirmou nos dados do último balanço da ANS.

No primeiro semestre de 2024, o setor registrou um lucro líquido de R$ 5,6 bilhões, o melhor resultado desde 2019. Quando os números foram divulgados, a agência classificou o momento como um “sólido caminho de retomada dos saldos positivos” do setor.

Para analistas ouvidos pelo JOTA, uma mudança no atual cenário apenas beneficiaria maus pagadores.

As críticas não são unânimes. Em entrevista concedida ao JOTA há poucas semanas, Rogério Scarabel, advogado do escritório M3BS Advogados e ex-presidente da ANS,  afirmou que a medida poderia manter as empresas em atividade. Para ele, haveria problema caso houvesse a extinção das garantias, o que não deve ocorrer.

Revisão técnica

Assim como mudanças nos ativos garantidores, a proposta de mudar as regras de revisão técnica ganhou corpo ano passado, com as queixas das operadoras de saúde sobre os ganhos do setor. “Os números mostram que empresas estão em uma situação confortável”, afirma Vilhena. Para a advogada, além de desnecessária, a mudança nas regras sobre reajuste de contratos antigos poderia expulsar consumidores dos planos, em razão do aumento das mensalidades. “Basta olhar o passado. O que aconteceu com empresas que usaram esse recurso? Uma regra seria uma espécie de cheque em branco para os usuários. Quando se trata de prestação de serviço em saúde, fica difícil imaginar qual reflexo isso poderá ter”, completou.

A Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde) foi procurada pelo JOTA, mas ainda não se manifestou. A Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) disse que iria comentar o tema apenas após a decisão final da ANS.