Nos últimos dias 6 e 13 estiveram em julgamento no plenário virtual do Supremo Tribunal Federal dois dos temas de repercussão geral mais conhecidos e de enorme impacto e relevância social, o Tema 006 e o Tema 1.234 do ementário de repercussão geral, respectivamente Recurso Extraordinário nº 566.471 e Recurso Extraordinário nº 1.366.243.

O Tema 006/RG é o mais antigo pendente de julgamento no ementário da repercussão geral do STF e, embora já contasse com todos os votos proferidos desde 2020, não tinha ainda sua tese fixada, considerando os diferentes critérios e ponderações lançados pelos ministros, o que dificultou a tabulação de uma tese uníssona.

Apresentado em plenário virtual para aprovação da tese sugerida em voto conjunto trazido pelos ministros Gilmar Mendes e Roberto Barroso, o processo teve o julgamento concluído em sessão virtual que ocorreu no dia 20 de setembro, após devolução do pedido de vista do ministro Nunes Marques.

Quanto ao Tema 1234/RG, o mais recente tema de repercussão geral afetado pelo Supremo  em matéria de judicialização de saúde [1], sua controvérsia de fundo parece ter sido resultado da falta de decisão no Tema 006/RG.

Com efeito, sem definição de responsabilidades e competências para fornecimento de medicamento de alto custo não incorporado às políticas públicas do SUS, os entes federados, uma vez demandados, atribuem a responsabilidade às demais entes, surgindo, daí, os conflitos de competência que motivaram a afetação do tema de repercussão geral.

Judicialização de saúde e conflito federativo

O que ficou conhecido como judicialização da saúde consiste no tipo de demanda judicial na qual a pretensão deduzida tem relação com prestação de serviços de saúde ou entrega de medicamentos e tecnologias afins. Via de regra compõem o polo passivo da lide entes públicos, a quem são direcionadas as obrigações que, sendo procedente a ação, são prestadas ao cidadão.

Normalmente, portanto, a diagramação processual é vista entre o autor, pessoa física que pretende receber o serviço ou medicamento, e o ente público que cumprirá a obrigação: União, estado, Distrito Federal ou município. Em tais categorias de ação, entretanto, a relação processual não se esgota no binômio autor versus réu, pois também entre os entes federados que compõem o polo passivo se estabelece um conflito, especificamente no que diz respeito à responsabilidade financeira e institucional.

Dessa forma, os casos de judicialização de saúde trazem em sua essência uma parcela de conflito federativo, considerando que é concorrente a competência para executar a política pública de saúde. Embora esse aspecto inerente às ações de prestação de saúde não seja objeto de grandes investigações, o enfrentamento desse conflito federativo submerso em tais demandas pode ser um caminho profícuo para o melhor funcionamento do sistema e para a racionalidade da Justiça.

Os entes federados vivenciam forte experiência de diálogo interfederativo no âmbito das Comissões Intergestores Tripartites do Sistema Único de Saúde. Apesar disso, racionalizar os custos e competências relacionados com a judicialização de saúde consistia em desafio praticamente impossível de ser atendido no âmbito administrativo, pois a maior parte da judicialização acontece quanto às tecnologias que não estão inseridas nas políticas públicas do SUS, o que leva à natural compreensão, por parte da administração pública, de que a prestação não é devida.

Note-se que, quanto aos fármacos e tecnologias incorporados às políticas públicas do SUS, caso não entregues e disso decorra a judicialização, trata-se, em verdade, de demandas relacionadas à falha na prestação do serviço por parte da administração pública [2]. Embora também considerado judicialização da saúde, tais modalidades de demandas judiciais são de muito mais simples solução, pois as responsabilidades e custos para a entrega do bem pretendido já estão previamente definidos.

O conflito federativo mostra-se evidente, por sua vez, nos casos em que o medicamento pretendido não está inserido na política pública do SUS, hipótese em que não é possível atribuir, aprioristicamente, a responsabilidade pelo seu custeio a nenhum dos entes. E foi exatamente para esse campo de conflito federativo que o Supremo Tribunal Federal viu no Tema 1234/RG um caminho possível para obtenção de soluções racionais e mais eficazes.

Repercussão geral e conciliação federativa na jurisdição constitucional

Com efeito, o STF instaurou, no Tema 1.234/RG, mesa de conciliação para tratar da judicialização de saúde e chamou para a negociação a União, os estados-membros e os municípios, pois a concertação do conflito federativo que permeia o tema poderia viabilizar soluções efetivas, com maior satisfação dos anseios dos jurisdicionados que usam o sistema público de saúde.

Simplesmente reconhecer a responsabilidade solidária e imputar ordens judiciais indistintamente aos entes federativos não tem tido um resultado eficaz. O STF, identificando o conflito federativo que existe como pano de fundo das demandas de saúde, proporcionou intenso diálogo institucional entre os entes federados, na tentativa de viabilizar soluções acordadas e factíveis, com efetiva redução da litigiosidade.

A jurisdição constitucional já havia conduzido experiências exitosas de conciliação federativa, como o pioneiro caso, ocorrido na ADO 25, em que se discutia a ausência de lei regulamentadora das perdas de ICMS pelos estados exportadores, e também a conciliação federativa viabilizada na ADPF 984 e ADI 7.191, que tratavam de alíquotas de ICMS e essencialidade de combustíveis.

Diferente dos exemplos citados, que tinham forte componente econômico de compensação entre os entes — o que facilitou a negociação e o consenso geral —, a judicialização de saúde representa demanda de natureza difusa, com múltiplos interesses envolvidos, sendo o conflito federativo e os aspectos econômicos apenas alguns dos elementos que compõem as ações judiciais.

Além disso, diferente dos exemplos de conciliação federativa mencionados, que foram conduzidos em processos de controle concentrado de constitucionalidade, a judicialização de saúde chegou à mesa de conciliação do STF por meio de recurso extraordinário com repercussão geral.

Os trabalhos conciliatórios, apesar do trilho processual diferenciado, seguiram o mesmo padrão que a Corte adotou nas conciliações realizadas no curso das ações diretas de constitucionalidade, inclusive pretendendo-se conferir ao acordo do Tema 1234/RG os mesmos efeitos.

A condução da instrução conciliatória no âmbito de um recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida mostrou-se ser apenas mais uma das evidências de absoluto sincretismo dos sistemas de controle difuso e concentrado de constitucionalidade na Suprema Corte, aproximação que tem se observado em inúmeros julgados recentes, como se extrai, por exemplo, do julgamento dos Temas 881 e 885 de repercussão geral.

A abstrativização da controvérsia por meio do julgamento do recurso extraordinário na sistemática da repercussão geral ganhou contornos ainda mais evidentes no caso da judicialização de saúde, pois a mesa de conciliação do Tema 1234/RG abrangia um vasto leque de discussão, podendo alcançar questões ainda pendentes de fixação de tese no Tema 006/RG, assim como, podendo revisitar as teses já fixadas nos Temas 793/RG e 500/RG.

Com efeito, os parâmetros negociados no Tema 1234/RG se refletiram na tese fixada para o Tema 006/RG e, além disso, ficou assentado que o Tema 793/RG não mais seria aplicável a medicamentos, restringindo-se, doravante, a processos em que se pleiteiam próteses, órteses, tratamentos e outras tecnologias. Também ficou reafirmada no Tema 1234/RG a tese referente ao Tema 500/RG.

Vê-se, portanto, que o Tema 1234/RG, ao homologar o acordo federativo, esclareceu pontos e reafirmou entendimentos relacionados com a plêiade de temas de repercussão geral que tratam da judicialização de saúde, funcionando como um verdadeiro uniformizador do entendimento da Corte Suprema sobre o assunto.

A importância dessa uniformização e consolidação de entendimentos é ainda mais relevante quando se tem em vista que o resultado do julgamento foi obtido a partir do diálogo institucional, com amplo debate e construção de soluções conciliadas entre os entes da federação.

Trabalhos conciliatórios

Um dos maiores desafios dos trabalhos conciliatórios se deveu em razão da representatividade dos entes federados e a legitimidade de seus posicionamentos, dificuldade observada especialmente quanto aos entes estaduais e municipais. Os estados e o Distrito Federal participaram da conciliação por meio do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) e por meio de inúmeros procuradores dos estados, que atuaram em conjunto, sob a liderança do Conpeg (Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e Distrito Federal).

Quanto à representatividade postulatória e judicial, observou-se, mais uma vez, a atuação colegiada dos estados da federação e o Distrito Federal na condução de pautas jurídicas perante as cortes superiores, com alinhamento de entendimento e articulação interfederativa harmoniosa, preservando-se a independência e autonomia dos entes, em mais um exemplo de bem sucedida cooperação federativa horizontal em juízo.

A conciliação no âmbito da jurisdição constitucional, embora não seja propriamente novidade [3], como se viu linhas atrás, é ainda considerada medida inovadora, tendo em vista a natureza dos processos em que tem sido instaurada. Quanto ao Tema 1.234/RG, embora na origem se trate de um recurso extraordinário e, portanto, verse sobre caso concreto — o que estaria perfeitamente compatível com a noção clássica de conciliação —, seu processamento na sistemática da repercussão geral o aproxima do sistema abstrato e concentrado de controle de constitucionalidade.

A conciliação no âmbito das causas abstrativizadas e perante o STF , por sua vez, merece ser considerada conforme as peculiaridades da atuação exercida pela Suprema Corte, observando-se os possíveis papeis por ela desempenhados no exercício da jurisdição constitucional, com enfoque na abertura de sua cognição e do debate democrático, elementos que conferem ampla legitimidade às suas decisões.

Homologação do acordo pelo STF e seus efeitos

O acordo foi homologado no âmbito de um recurso extraordinário julgado sob a sistemática da repercussão geral, o que, por si só, seria suficiente para gerar efeitos vinculantes a todo o sistema de justiça (CPC, artigo 927), mas não, em princípio, à administração pública. Isso porque não seria possível atribuir à decisão a mesma força vinculante e eficácia expressamente previstas pela Constituição às ações de controle concentrado de constitucionalidade (CF, artigo 102, §2º), por falta de previsão legal ou constitucional nesse sentido.

Apesar disso, o Supremo tem externado o entendimento de que as decisões proferidas em recursos extraordinários julgados na sistemática da repercussão geral têm a mesma eficácia e força vinculante das decisões proferidas nas ações de controle concentrado de constitucionalidade[4]. De todo modo, para que não haja dúvidas a respeito da vinculação da decisão que homologou o acordo no Tema 1234/RG, o relator do feito optou por propor a edição de uma Súmula Vinculante (SV nº 60) para reforçar a necessidade de cumprimento dos termos pactuados, inclusive, pela administração pública (CF, artigo 103-A) [5].

Além disso, a edição da súmula vinculante permitirá que eventuais descumprimentos dos termos do acordo possam ser levados à apreciação direta do Supremo por meio de Reclamação, sem necessidade de esgotamento das instâncias ordinárias (CPC, artigo 988, §5º, II).

O amplo diálogo institucional proporcionado pelo STF permitiu chegar à solução de controvérsias federativas por um produto aperfeiçoado pela interação dos entes federados, transformando o conflito federativo em debate harmônico, numa construção dialógica que envolveu diversos atores e cujo resultado, certamente, é bem mais sofisticado do que aquele que se teria se obtido por meio de decisões judiciais isoladas, ou por processos legislativos eventualmente distanciados da realidade dos tribunais.

O arranjo conciliatório fortalece a federação, e a Corte Constitucional se apresenta como ambiente propício a sediar os debates federativos, desempenhando seu papel de tribunal da federação de modo inovador, ampliando sensivelmente sua atuação no campo da solução dos conflitos entre os entes federados, convertendo o federalismo de competição em verdadeiro federalismo de cooperação.