É amplamente conhecida a sobrecarga de demandas que recaem sobre a Justiça brasileira. Historicamente, um dos temas mais reclamados tem sido a saúde. Mais especificamente, a saúde suplementar. Trata-se de atividade sensível por natureza e que exige dos decisores – ou deveria exigir –conhecimentos técnicos específicos e aprofundados para uma melhor resolução dos conflitos.

Os efeitos negativos da judicialização sobre os sistemas de saúde são conhecidos. Embora o direito a reclamar à Justiça seja uma garantia constitucional e, portanto, deva ser sempre respeitado, em muitos casos as decisões judiciais distorcem a melhor alocação de recursos e subvertem orçamentos previamente planejados com base em premissas claras, conhecidas e aceitas pela sociedade. Aplicadas na suposição de defender reclamantes individualmente, muitas decisões acabam por prejudicar o fundo mutual e os usuários dos sistemas de saúde.

Temos, portanto, evidências em abundância a indicar que algo precisa ser feito para evitar que tamanha sobrecarga continue a afetar bom funcionamento do Poder Judiciário, resultando em decisões nem sempre equilibradas em contendas envolvendo planos de saúde. Neste sentido, a FenaSaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar) tem defendido que, cada vez mais, o sistema de saúde deve valer-se de todos e mais variados instrumentos técnicos à disposição para promover resoluções justas para os usuários da sociedade mutual, sopesando direitos e deveres de pacientes, operadoras e prestadores. É o caso das juntas médicas.

A previsão de realização de junta médica existe desde a Resolução CONSU 8, de novembro de 1998, conforme disposto em seu art. 4º, inciso V: “Garantir, no caso de situações de divergências médica ou odontológica a respeito de autorização prévia, a definição do impasse através de junta constituída pelo profissional solicitante ou nomeado pelo usuário, por médico da operadora e por um terceiro, escolhido de comum acordo pelos dois profissionais acima nomeados, cuja remuneração ficará a cargo da operadora”.

Contudo, somente com a RN n° 424/2017, editada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), com participação do Ministério Público e da Defensoria do Estado do Rio de Janeiro, o tema tornou-se amplamente regulamentado. O uso das juntas consta, inclusive, de um dos enunciados sobre direito da saúde aprovados pelo Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde do Conselho Nacional de Justiça. Até agora, entretanto, sua aplicação tem sido incipiente e tem estado muito aquém do desejável.

Em síntese, a junta médica ou odontológica é o instituto que permite à operadora discordar da indicação de procedimentos requeridos pelo profissional assistente do beneficiário do plano, pelo qual se estabelece um rito formal para a solução de divergências técnico-assistenciais. A junta é tripartite, composta pelo médico ou dentista assistente, por um profissional da operadora e por um terceiro, escolhido em comum acordo entre as duas partes.

Isso significa que a junta médica não é um instrumento das operadoras, mas sim de todo o sistema de saúde suplementar, importante para a salvaguarda de todas as partes envolvidas. Tem regras de constituição, operação e processos bem definidos, e que devem ser obedecidos sempre que há divergência clínica sobre o procedimento a ser coberto pelas operadoras de planos de saúde.

Importante destacar que a norma da ANS também define situações em que a constituição de juntas médicas não é permitida, como nos casos de urgência e emergência.

Em manifestação recente, datada de setembro último, no âmbito dos REsp 1.870.834 e REsp 1.872.321, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) firmou importante entendimento prevendo a possibilidade instauração de junta médica, pela operadora do plano, quando houver dúvidas justificadas e razoáveis quanto ao caráter eminentemente estético de cirurgias plásticas indicadas a pacientes após cirurgias bariátricas.

Em seu art. 10, II, a lei dos planos de saúde prevê a exceção de custeio obrigatório de procedimentos clínicos ou cirúrgicos para fins estéticos, os quais, conforme a regulamentação da ANS, são os “que não visam [à] restauração parcial ou total da função de órgão ou parte do corpo humano lesionada” (art. 17, parágrafo único, II da RN n° 465/2021). A existência de uma zona cinzenta vinha, contudo, resultando numa avalanche de pedidos de cirurgias plásticas supostamente reparadoras, com ações ajuizadas com pedidos de concessão de liminar, laudos muitas vezes falsos e até mesmo de igual teor (idênticos!) para vários pacientes – ou seja, envoltas em fraudes. Não raro, as decisões foram favoráveis aos reclamantes.

A partir do voto do relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, a 2ª Seção do STJ fixou a seguinte tese: “Havendo dúvidas justificadas e razoáveis quanto ao caráter eminentemente estético da cirurgia plástica indicada ao paciente pós-cirurgia bariátrica, a operadora de plano de saúde pode se utilizar do procedimento da junta médica, formada para dirimir a divergência técnico-assistencial, desde que arque com os honorários dos respectivos profissionais e sem prejuízo do exercício do direito de ação pelo beneficiário, em caso de parecer desfavorável à indicação clínica do médico assistente, ao qual não se vincula o julgador.”

A realização de juntas médicas na hipótese de divergência, oferece resposta adequada e desejável a situações de conflito. Não configura cerceamento de acesso à Justiça, mas sim forma de incentivo a soluções para os problemas em âmbito administrativo. Funciona, pois, como importante instrumento para evitar a judicialização.

Ademais, as juntas médicas têm o condão de funcionar como amparo à saúde e ao bem-estar do paciente. Isso porque evitar riscos desnecessários ao paciente, contém os desperdícios e, com isso garante sustentabilidade ao setor de saúde suplementar.

A maior disseminação do instrumento das juntas médicas pode ser um dos componentes deste esforço de reabilitação, em conjunto, claro, com outras importantes mudanças estruturais, como a redefinição dos ritos de incorporação de novos medicamentos, procedimentos e tratamentos adotados no país. Em particular, as juntas médicas deveriam compor, com especial relevo, o ecossistema que define as coberturas de pacientes transtorno do espectro autista considerando o surgimento crescente de métodos e técnicas e a demanda exponencial de atendimentos demandados aos planos de saúde.

A judicialização apresenta-se como um dos principais fatores a onerar os sistemas de saúde. Não se desconsidera a legitimidade do direito de acesso à Justiça, mas os abusos e o uso desnecessário do Poder Judiciário precisam ser combatidos. E é por isso que se revela importante dispormos de instrumentos técnicos, baseados em dados e evidências, para auxiliar os juízes em suas tomadas de decisão, a bem da sociedade. A utilização da junta médica é um desses caminhos, e merece ser olhada com mais carinho e atenção.