Apenas 24% dos terráqueos têm acesso a informações confiáveis sobre tabaco, álcool e drogas; perto de 23% sabem alguma coisa sobre saúde mental e pouco mais de 22% têm informações razoáveis sobre exames preventivos. Esse é retrato da pesquisa “Empowering healthy communities and individuals: removing barriers through health literacy”, realizada pela The Economist com 40 países (42 mil indivíduos), incluindo o Brasil e sendo publicada em 2024. O Índice de Inclusão em Saúde (Fase 2), denominado “Health Inclusivity Index”, explora a conexão entre a inclusão e a alfabetização em saúde, fornecendo insights sobre as lacunas globais do letramento em saúde e como elas podem ser abordadas.

Segundo a pesquisa, o Brasil, por exemplo, confia mais nos médicos para receber informações sobre saúde (infosaúde): 80% dos entrevistados (questionamento presencial) responderam que sua ‘principal fonte de informação sobre sua saúde’ são os médicos. Essa poderia ser uma boa notícia. Mas a mesma pesquisa relata que somente 18% dos brasileiros têm como fonte de informação em saúde a escola ou a universidade. Ou seja, a grande maioria da população recebe insignificante formação básica em saúde no ensino fundamental, médio e universitário. Geramos analfabetos em saúde aos milhões, sendo reféns da ignorância sanitária, que ao longo dos anos os agrupa nas curvas de sinistralidade do SUS e da Suplementar. Como a média nacional por paciente é de ‘uma visita anual ao médico’, somos uma legião de ignorantes em Saúde, a mais importante competência individual contra a morbidade. Nesse meio tempo, cravamos uma ‘estaca no coração’ dos Sistemas de Saúde (público e privado), entupindo suas estruturas com todos os tipos de descuidados sanitários.

Quantificando apenas o lado masculino da população: se 88% dos homens-brazilis vão ao médico somente uma vez ao ano (fonte: Instituto Lado a Lado pela Vida), e 80% deles revelam que sua principal fonte de informação em saúde é o médico, não é difícil pensar que o país possui mais de 74 milhões de homens (base de cálculo: IBGE) que passam mais de 360 dias ao ano sem obter informações confiáveis sobre sua saúde. São tecnicamente “analfabetos em saudabilidade”, nunca recebendo qualquer letramento formal ao longo da vida. Portanto, não são potenciais pacientes, mas potenciais sinistros.

Ainda segundo a pesquisa, no índice de “Inclusão em Saúde” (que nada mais é do que “as possibilidades de acesso aos sistemas de saúde”), a Austrália é o único país a atingir uma pontuação superior a 80 pontos (de um total de 100). Pela ordem: o Reino Unido pontua 78,8; os EUA, 75,8; Coreia do Sul, 74,6; Alemanha, 73,4; Tailândia, 72,8; África do Sul, 70,8; Japão, 68,8; etc. O Brasil está ranqueado em 17º lugar no índice, com uma pontuação de 65,8 pontos. Trata-se de uma classificação na mediana do ranking, sendo a nação sul-americana mais inclusiva em saúde entre os 40 países pesquisados (pode aplaudir o SUS). Não é uma colocação desprezível, mas é frágil para uma das dez maiores economias do mundo. Todavia, além do acesso ao sistema de saúde, o que conta hoje é a ‘independência que o indivíduo possui para não precisar dele’: uma mistura de autocuidado (proteção informacional) e letramento em saúde (proteção formacional). Um cinturão protetivo, ineficiente em quase todos os países.

A principal causa da falência econômica global dos Sistemas de Saúde é sem sombra de dúvida o crescimento das curvas demográficas. O planeta está abarrotado de humanos, fazendo com que a demanda por serviços de saúde seja largamente superior à oferta deles. Um dos mais relevantes pontos abordados no estudo do The Economist é justamente o Letramento em Saúde, que no fundo pode ser mais importante até do que o próprio acesso ao sistema. Há uma desconexão gritante entre as políticas de alfabetização em saúde em vigor (aquilo que está no “papel”) e as experiências vividas por indivíduos e comunidades: “houve uma lacuna de 36 pontos entre os países que dizem ter política de alfabetização em saúde e a real alfabetização experimentada pelos respondentes da pesquisa”, explica o estudo. Na prática, o relatório indica que os esforços políticos para construir mecanismos de alfabetização em saúde ainda não são traduzidos em resultados. O caso do Brasil é clássico: as políticas de letramento em saúde são tímidas e pouco divulgadas.

Ainda segundo o estudo, as respostas mostraram que as fontes de informação em saúde mais utilizadas pelo brasileiro são, pela ordem: Seu Médico (80%); Profissionais de Saúde (66%); Outros Profissionais do Setor, como dentistas (52%); Familiares e Amigos (44%); Web Sites focados em Saúde (21%); Farmacêuticos (35%); Redes Sociais (25%); Web Sites Governamentais (24%); Escolas e Universidades (18%); Instituições Religiosas (14%); etc. Os números variam quando a pesquisa é feita em meio digital, mas as conclusões são parecidas.

Fica evidente o desleixo educacional-formal com o letramento em saúde em quase todos os países, embora vários deles estejam promovendo ações legislativas para incluir níveis razoáveis de alfabetização sanitária desde a tenra idade. O Reino Unido, por exemplo, possui o PSHE (Personal, Social, Health and Economic Education) desde 2021, um programa de letramento em saúde obrigatório em todas as escolas desde o primeiro grau da formação educacional.

A Geração Z (1997-2004), por exemplo, teve na pesquisa os menores níveis percebidos de acesso a informações de saúde sobre exames preventivos e uso de álcool, tabaco e drogas. “Por mais que possa beneficiar os jovens se juntar em grupos de interesse online e seguir perfis na mídia social, a informação nunca é validada. Então, se os jovens não são capazes de aplicar o pensamento crítico… eles podem simplesmente tomar as palavras como definitivas e confiar no que está sendo dito, sendo, portanto, vítimas da desinformação”, explica Kristine Sorensen, fundadora do Global Health Literacy Academy e presidente executiva do Health Literacy Europe.

O estudo também explica que na esteira da pandemia, os esforços para lidar com a “desinformação sobre saúde nas mídias sociais” aumentaram. “A OMS trabalhou com o YouTube para aprimorar a sua Política de Redução da Desinformação sobre a Covid-19, por exemplo, fornecendo diretrizes para desenvolvedores de conteúdo, de modo a evitar que a informação errática, negacionista e fake se espalhe na plataforma. Essas ações resultaram na remoção de 850 mil vídeos do YouTube associados à desinformação sobre a Covid-19 entre fevereiro de 2020 e janeiro de 2021”.

Um velho adágio cita: “a ignorância é atrevida”. Considere que a Austrália e o Brasil estão entre as 8ª e 13ª economias do mundo (PIB nominal). O que têm em comum seus sistemas de saúde: se esmeram em ganhar campeonatos de analfabetismo em saúde. Exemplo: a hipertensão é a principal causa de morte evitável na Austrália (um em cada três adultos são portadores), sendo que no Brasil esse mal atinge cerca de 27,9% da população (dados Vigitel, 2023). As duas nações preferem “esgotar” seus recursos no amparo do que na prevenção à doença, sem falar no quadro de multimorbidade que a hipertensão acarreta. Não é possível resolver iniquidades clínico-assistenciais desse nível sem literacia em saúde. É por demais óbvio, mas, como dito acima, “a ignorância é atrevida”.

Até 60% dos australianos têm baixa alfabetização em saúde, o que está associado a custos médicos em constante expansão. O país desenvolveu o National Preventive Health Strategy 2021-2030, uma estratégia ousada (no papel) para melhorar o letramento sanitário. Estudo publicado em julho/2024 na The Lancet (“Health gains from achieving optimal body mass index in Austrália: a simulation study”) avaliou quais seriam os ganhos se as práticas preventivas da ‘National Preventive’ estivessem funcionando em suas principais correntes: (1) letramento em saúde e (2) promoção para mudança de maus hábitos. Essas duas verticais poderiam reduzir o IMC do país para valores ideais (>25), com cada australiano ganhando em média 10 meses de vida saudável. Isso implica em melhoria na qualidade de vida, redução de doenças crônicas relacionadas à obesidade e uma substancial melhoria na Economia da Saúde. ​Mas a implantação da estratégia é lenta e acanhada, compondo muito mais uma promessa do que ações efetivas.

“A hipertensão tem como uma das principais causas a obesidade”. Mas quem realmente sabe disso? Quem, desde a primeira escolaridade, aprende que a ‘silenciosa hipertensão’ pode estar sendo gestada pelo acúmulo calórico? Em 2022, mais de 66% dos australianos adultos estavam acima do peso. Desses, 32% estavam patologicamente obesos (homens: 71%; mulheres: 61%). Além disso, 13% dos adultos viviam obesos com IMC acima de 35 (obesidade severa). Entre as crianças australianas (que seguramente recebem na escola conhecimento farto sobre os principais afluentes do Rio Murray), a obesidade é catastrófica: na público infantojuvenil, entre 2 e 17 anos, cerca de 26% estavam em sobrepeso ou obesidade em 2022. Ou seja, são “máquinas de produzir cronicidade”, como doenças cardiovasculares e diabetes.

Adianta pouco produzir novos medicamentos para redução de peso. Reduz o problema, mas não reduz a “criatura”, ou seja, não reduz o ‘moto-propagador da obesidade’, que são os hábitos nocivos à saudabilidade. Nesse conformismo superlativo, promovido por um ambiente de baixa literacia em saúde, Brasil e Austrália disputam com outras nações a ‘medalha de ouro do analfabetismo em saúde’: 1/3 dos recém-nascidos hoje, em qualquer dos dois países, está condenado à obesidade e/ou hipertensão. Lembrando: o cenário nacional em relação à hipertensão é bem mais crítico. Relatório da OMS (2023) sobre a doença aponta que enquanto a média global de afetados é de 33% (adultos entre 30 e 79 anos), no Brasil o índice pode alcançar 45% (desse total, 62% possuem diagnóstico, mas apenas 33% estão com a pressão controlada). Como na Austrália, a ignorância nacional em saúde também incentiva a produção de enfermidades.

O letramento em saúde no mundo é baixo, sendo uma ‘corrida’ para todos os países. Na Europa, 47% da população tem ‘alfabetização em saúde limitada’, sendo que na China não mais de 30% dos residentes possui alguma alfabetização básica em saúde (fonte: Comissão Nacional de Saúde da China). A OMS explica que populações com baixa alfabetização sanitária possuem conhecimento limitado sobre ‘onde e quando procurar serviços adequados de saúde’, sendo menos propensas a procurar cuidados preventivos. Em geral, os países com altas taxas de analfabetismo em saúde “administram mal seu sistema de cuidados clínico-assistenciais”, enfrentando maiores taxas de mortalidade.

Para efeito provocativo, cabe uma pergunta: “o que aconteceria se uma criança em toda a sua fase educacional (formal) não recebesse nenhum conhecimento sobre Geografia?” Antes de responder, estratifique as ameaças, pondere os desdobramentos e avalie se esse indivíduo teria risco de vida, ou seria banido de sua comunidade, ou se haveria impedimentos para ele obter emprego ou gerar uma família. Depois, pense em outra pergunta: “o que aconteceria se uma criança em toda a sua fase educacional (formal) não recebesse nenhum conhecimento sobre Saúde Fundamental?” Nas hostes do Estado brasileiro, que legisla os mandamentos para Educação e Saúde, não parece haver dúvida: a carga de Geografia (ou História, Arte, Ciências, etc.) é muito mais relevante do que a carga de conhecimento em Saúde Fundamental que um jovem recebe, ou deveria receber, já que essa disciplina está agora escondida no âmbito do “Novo Ensino Médio” (Projeto de Lei 5230/23), na ementa de “Ciências da Natureza e suas Tecnologias”, seja lá o que isso signifique. De qualquer forma, os pesos são desiguais: os afluentes do Rio São Francisco ainda serão mais importantes que a obesidade infantil (“a ignorância continuará atrevida”).

O momento do aprendizado é transformador na vida de uma criança. Mais ainda se o alvo do conhecimento é o próprio corpo humano. É preciso fazê-la conhecer a saúde humana com a mesma amplitude e euforia com que apreende a ler, como tão bem descreve a autora Betty Smith em sua obra “Uma árvore cresce no Brooklyn”: “O momento em que a criança descobre que consegue ler as palavras impressas é mágico e único. Por um tempo, a pequena Francie só sabia pronunciar as letras uma a uma, e depois juntava os sons para formar uma sílaba. Mas um dia, enquanto folheava um livro, a palavra “rato” apareceu na íntegra e imediatamente fez sentido. Ela olhou para a palavra e para a imagem de um rato cinza estampada em sua cabeça. Ela continuou lendo e quando vislumbrou a palavra “cavalo”, ouviu o bater de seus cascos no chão e viu o sol brilhando em suas crinas. A palavra “correr” a atingiu de repente, instantaneamente ela começou a suspirar, como se realmente estivesse correndo. A barreira entre o som de cada letra e o significado de uma palavra inteira havia entrado em sua vida. Agora, com um simples olhar, a palavra impressa revelou-lhe o seu significado. Ela passou por algumas páginas rapidamente e quase chorou de emoção. Queria gritar para o mundo inteiro: “Descobri! Agora eu sei o que são as palavras. Agora eu sei ler!”