A interoperabilidade na saúde tem sido apontada como a maneira mais eficiente de se atingir a sustentabilidade de todo o sistema, reduzindo custos, otimizando processos e melhorando a qualidade no atendimento.

No Brasil, segundo especialistas, o tema ainda está na fase de debates, evoluindo lentamente, embora seja um consenso que sem a integração e compartilhamento de informações não há como o sistema de saúde se manter sustentável.

“Ao longo dos últimos anos, o Brasil vem avançando significativamente na implementação de estratégias e padrões para melhorar a interoperabilidade, mas enfrenta desafios devido à fragmentação de sistemas e falta de padronização, além das desigualdades em termos de conectividade e digitalização nas diversas regiões do país”, diz Wislas Sousa, coordenador de Relações Governamentais do Saúde Digital Brasil (SDB).

Segundo ele, considerando que a interoperabilidade no setor de saúde é essencial para garantir a troca eficaz de informações entre sistemas e organizações, aprimorando práticas do setor de saúde digital, torna-se crucial, cada vez mais, priorizar a preparação de uma rede de atendimento informatizada e a padronização de dados.

“A interoperabilidade, ao mesmo tempo que é extremamente necessária, é difícil, porque envolve reunir dados de todos os cidadãos, de consultórios médicos, prestadores de serviços públicos e privados e, diante disso, ainda é preciso enfrentar questões relacionadas à privacidade de dados. As dificuldades tecnológicas são as menores. Temos questões importantes a enfrentar, como financeiras, operacionais e jurídicas”, analisa Antônio Britto, diretor-executivo da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp).

Para Britto, a explicação para o Brasil se encontrar ainda atrasado em relação à interoperabilidade pode estar no fato de o país contar com dois sistemas de saúde e de que só recentemente a internet ter chegado a todas as regiões.

“Faz pouco tempo que pudemos começar a contar com postos de saúde informatizados. Só recentemente os hospitais passaram a informatizar dados relativos à internação, mas na maioria deles isso ainda é feito à mão, pela equipe de enfermagem. O próprio estágio de atraso de tecnologia e a fragmentação do sistema de saúde explicam por que estamos atrasados”, diz ele.

Para Giovanni Cerri, presidente do conselho do InovaHC, um ponto que impede a interoperabilidade de avançar é que o setor privado considera os dados do paciente como propriedade da instituição, e não do indivíduo. “Existe um receio de que o compartilhamento de dados leve a uma perda de pacientes, mas o que faz a instituição perder pacientes é a ineficiência. Não existe limitação tecnológica – o sistema bancário já mostrou isso. Existe necessidade de querer fazer, tanto por parte do setor público quanto do privado.”

Também, acredita ele, a questão não está no custo, pois o valor investido teria um retorno rápido, com grandes benefícios ao sistema de saúde e, principalmente, ao paciente. “Para que a interoperabilidade se torne realidade, ela precisa ser encarada como prioridade do estado e como necessidade urgente que pode ajudar na sustentabilidade do sistema. Com ela, podemos acelerar procedimentos, ter diagnósticos mais precoces e estabelecer condutas de tratamento com mais rapidez.”

Iniciativas apontam para um futuro promissor 

Em 2020, foi instituída a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) como plataforma de interoperabilidade em saúde. A iniciativa conjunta do Departamento de Informática do SUS (Datasus) e da Secretaria Executiva do Ministério da Saúde faz parte de um projeto estruturante do Conecte SUS, programa do Governo Federal para transformação da saúde digital no país.

Por iniciativa do Conselho Nacional de Saúde, em 2021, foi criada a Política Nacional de Informação e Informática (PNIIS), que estabelece princípios e diretrizes para integrar sistemas de informação em saúde nos setores público e privado.

“A PNIIS tem por objetivo melhorar a governança, transparência, segurança e acesso às informações de saúde, beneficiando a população. Ela orienta ações de diversas entidades e profissionais de saúde, enfatizando a universalidade, integralidade, equidade, democratização e descentralização dos dados, preservação da qualidade da informação, confidencialidade, privacidade, autonomia do usuário e desenvolvimento de iniciativas focadas no bem-estar do cidadão”, destaca Sousa.

Além disso, em 2024, o Ministério da Saúde instituiu o Programa SUS Digital, com o objetivo principal de estabelecer diretrizes que possibilitem a promoção do acesso da população às ações e serviços do SUS por meio da transformação digital.

“Ainda neste ano, o Ministério da Saúde, através da Secretaria de Informação e Saúde Digital (SEIDIGI), finalizou o repasse de R$ 232 milhões da Primeira Etapa de Adesão do Programa SUS Digital, aos estados e municípios participantes. Desse total, R$ 69,6 milhões foram destinados aos 26 estados e ao Distrito Federal, e R$ 162,4 milhões aos 5.567 municípios, abrangendo 99,9% do total”, destaca Sousa.

No contexto hospitalar, Britto comenta que existem instituições privadas e públicas que vêm avançando na interoperabilidade. Embora o ideal seja que os dados sejam compartilhados entre todos os envolvidos no ecossistema de saúde, quando essa integração se tornar realidade, eles poderão disponibilizar esses dados com facilidade para um sistema único nacional.

Um exemplo de benefícios trazidos pela interoperabilidade no sistema vem do Hospital das Clínicas, que, segundo Cerri, foi um dos pioneiros na interoperabilidade durante a pandemia de Covid-19, quando todas as informações dos pacientes se encontravam disponíveis em uma mesma plataforma, o que inclusive ajudou a impulsionar a pesquisa sobre a doença.

“Naquele momento, pudemos perceber a importância de ter dados reunidos em um mesmo lugar. Começamos na pandemia e queremos avançar. Os dados existem, mas eles precisam estar reunidos em uma plataforma única que possa ser integrada em uma plataforma nacional no futuro’, explica Cerri.”

Ele diz ainda que o InovaHC vem promovendo essa discussão para propor soluções de como tornar a interoperabilidade uma realidade em curto prazo. “Sabemos que o Brasil é um país de enormes desafios em relação a suas desigualdades, ao atendimento a populações remotas e a suas dimensões continentais, mas podemos iniciar esse compartilhamento de dados por regiões, por exemplo, e ir evoluindo gradativamente. Se não começarmos em algum momento, continuaremos protelando uma necessidade, porque as condições tecnológicas existem há anos.”

Impacto na qualidade do atendimento 

É compreendido que a interoperabilidade é crucial para melhorar a eficiência, a segurança e a qualidade da assistência prestada. “Ela permite o compartilhamento de informações em tempo real, acompanhamento do paciente, melhoria do atendimento e eficiência na gestão de recursos públicos. Além disso, pode levar à redução de custos ao evitar procedimentos repetitivos desnecessários que vemos hoje tanto na saúde pública quanto privada. Portanto, é um elemento importante para aprimorar a assistência à saúde”, explica Sousa.

No HCor, por exemplo, o processo de transformação digital teve início há três anos, tendo a interoperabilidade ganhado cada vez mais importância para a tomada de decisão clínica.

Mas para isso, explica Alex Vieira, superintendente de Inteligência Digital e TI, a informação precisa estar bem desenhada e integrada. “Hoje, contamos com diversos sistemas de informação que vão muito além de softwares. Em todas as alas de internação temos monitores de sinais vitais, prontuário eletrônico e um painel de acompanhamento do paciente que funcionam de maneira integrada. Com a ajuda da inteligência artificial, conseguimos fazer uma análise e predição do cuidado, antecipando possíveis problemas que o paciente possa ter, o que possibilita a oferta de um cuidado de excelência, focado em proteção, qualidade e segurança.”

Para Vieira, a robustez dos dados é que possibilitará uma melhor tomada de decisão. Mas para isso, desafios ainda precisam ser superados, como a falta de padronização dos protocolos de comunicação e sistemas que não se conectam ao barramento do HCor de maneira simples. “O input de informação é um desafio. Temos vários pontos de entrada, e padronizá-los é ainda uma dificuldade.”

Como a interoperabilidade funciona no exterior? 

No Reino Unido, o National Health Service (NHS) tem feito esforços para melhorar a interoperabilidade de dados em saúde. Isso envolve a criação de padrões e protocolos que permitem a troca segura e eficiente de informações de saúde entre diferentes sistemas e organizações, tanto públicas quanto privadas.

“No entanto, a interoperabilidade entre o NHS e o sistema privado de saúde pode ser desafiadora devido a vários fatores, como a diversidade de sistemas de TI utilizados, questões de privacidade e segurança dos dados, e a necessidade de garantir que a informação seja precisa e atualizada”, comenta Sousa.

Apesar desses desafios, o NHS tem trabalhado para melhorar a interoperabilidade com o setor privado. “Isso inclui a implementação de padrões de dados comuns, o uso de tecnologias de integração, como interfaces de programação de aplicações (APIs) e a promoção de uma cultura de compartilhamento de dados.

“Além disso, o NHS tem incentivado o uso de registros eletrônicos de saúde e outras tecnologias digitais para facilitar a troca de informações. No entanto, é importante notar que a interoperabilidade é um processo contínuo e requer esforços contínuos para manter e melhorar os padrões e protocolos existentes. Também é importante garantir que a privacidade e a segurança dos dados do paciente sejam mantidas em todos os momentos”, comenta Sousa.

Os países europeus têm investido em projetos de Tecnologias de Informação e Comunicação em Saúde (eHealth) para reduzir custos e centralizar o paciente no sistema. “A Itália economiza 1 euro para cada 9 gastos em procedimentos médicos devido ao eHealth. Na Holanda, Dinamarca e Reino Unido, mais de 80% dos atendimentos utilizam o Registro Eletrônico do Paciente. Estônia, Croácia e Suécia fazem mais de 95% de suas prescrições médicas eletronicamente. Essa tendência também é observada na América do Norte, Ásia, Oceania, partes da América do Sul e alguns países africanos”, destaca Sousa.

Regulamentação: presente e futuro 

O aumento da complexidade dos cuidados de saúde e a necessidade de compartilhar informações entre diferentes profissionais e organizações, tanto no âmbito do sistema público quanto privado, têm gerado uma crescente demanda por armazenagem eficiente e segura dos dados de saúde.

Um dos principais marcos regulatórios no contexto brasileiro é a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que se aplica à coleta, tratamento e compartilhamento de dados pessoais, inclusive os de saúde.

Além disso, o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) regulam o uso de tecnologia na saúde, estabelecendo regras para troca de informações médicas e práticas de segurança da informação.

Atualmente, o Congresso Nacional discute um projeto de lei, em análise na Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados e sob relatoria da Deputada Federal Adriana Ventura (NOVO/SP), que trata da criação de um prontuário eletrônico único e interoperabilidade de dados em saúde. O texto pode consolidar em lei federal as regras infralegais e estruturas que tratam sobre a RNDS, a Plataforma SUS Digital e o Cadastro Nacional de Pessoas para a Saúde (CadSUS).

Segundo Sousa, a expectativa do setor é que o Congresso consiga aprovar um texto que possibilite a instituição de uma plataforma, baseada na RNDS, que promova a interoperabilidade efetiva e descentralizada dos dados de saúde, reunindo não apenas informações médicas, mas também registros de saúde e fichas com informações clínicas essenciais, permitindo também seu espelhamento e compartilhamento para análises preventivas, por inteligência artificial, por exemplo.

Também se espera que a regulamentação em lei federal traga consigo mecanismos de controle e participação social, com a instituição de uma instância de governança que tenha composição equilibrada de representação, tanto do setor governamental quanto dos setores privado, terceiro setor, conselhos profissionais, além da comunidade científica e tecnológica.

“Além disso, existe a possibilidade de a nova legislação avançar no estabelecimento de princípios para estabelecimento de cadastros nacionais de identificação, conjuntos mínimos de dados, padrões de troca de dados e terminologias padronizadas.”