O setor de saúde brasileiro vem enfrentando uma forte crise, percebida por todos os players do mercado.
Na saúde suplementar, especificamente, a conjuntura negativa teve início quando as operadoras de saúde, para conseguirem gerir seu fluxo de caixa, aumentaram a pressão sobre seus fornecedores.
Depois de realizar procedimentos autorizados pelas operadoras, hospitais, laboratórios e empresas de home care (atenção domiciliar) vêm encontrando dificuldades para receber pelos serviços oferecidos, como a prorrogação de pagamento, falta de reajuste, inadimplência e, principalmente, as glosas médicas.
Um panorama da crise
Segundo Cláudio Flauzino, médico e diretor-executivo da Home Doctor, empresa pioneira em atenção domiciliar no país, as dificuldades do setor começaram na pandemia, quando houve uma baixa utilização dos serviços de saúde. Ele conta que naquele período, a realização de tratamentos de alta complexidade, como quimioterapia, além de cirurgias eletivas e exames, sofreu uma grande queda. Por outro lado, houve um importante encarecimento não só em recursos humanos, mas, também, em insumos, como materiais e medicamentos, e na logística.
“Ou seja, a matriz de custos aumentou, mas as operadoras não puderam repassar esse valor para os beneficiários. Nos anos seguintes à pandemia, diante dos resultados negativos e do aumento na sinistralidade, elas iniciaram movimentações que impactaram diretamente o setor. Por exemplo, deixaram de arcar com toda a conta, adiaram pagamento por um, dois e até três meses. O resultado é que quem já estava pressionado pelo aumento dos preços, como nós, da atenção domiciliar, ficamos totalmente sufocados”, diz Flauzino.
As demandas específicas do setor
O executivo destaca que os custos de uma empresa de atenção domiciliar envolvem, basicamente, recursos humanos, insumos e logística, as linhas que mais encareceram nos últimos anos, o que levou à fragilidade do setor.
Marcos Domingues, CEO da Qualivida, empresa de home care que atua nas regiões norte e nordeste, concorda que o cenário tem exigido muita cautela. “Vários aspectos, como o envelhecimento da população, aumento excessivo de custos e o downgrade do perfil da carteira das operadoras, que as leva a negociar os valores cada vez mais para baixo, tem contribuído para esse quadro. O modelo não está funcionando, é preciso repensá-lo, e em todos os sentidos”.
Sheila Silveira Siao Lopes, diretora de produção da CaptaMed, empresa de home care de Minas Gerais, também reforça as dificuldades que a saúde extra-hospitalar vem enfrentando. “Durante a pandemia houve um ganho de visibilidade para a atenção domiciliar, mas, ao mesmo tempo, uma perda de margem importante. Vale destacar, ainda, o problema do piso de enfermagem – na atenção domiciliar, especificamente, o uso dessa mão de obra é muito mais expressivo do que no hospital. No atendimento em casa, temos um profissional para atender um paciente, enquanto no hospital o mesmo técnico de enfermagem atende vários”, ela sinaliza.
Domingues também destaca a necessidade de compreensão, por parte das operadoras, de que o serviço de saúde em casa não é como o hospitalar. “A gente não tem um posto de enfermagem no fim do corredor, nem um médico permanentemente no local. Existe toda uma necessidade de programação, nossas empresas são de logística. Então os modelos de cobrança, de remuneração e de funcionamento precisam ser vistos à luz desse contexto específico, e não à luz do cenário hospitalar ou de clínica. Não é possível comparar uma empresa de saúde domiciliar com um hospital. É preciso considerar custos de deslocamento, por exemplo”, salienta o CEO da Qualivida.
Para Flauzino, da Home Doctor, outro ponto importante é que a gestão financeira exercida pelas operadoras tem atingido de forma mais acentuada as empresas de atenção domiciliar, porque essa ainda não é uma atividade inclusa no rol de procedimentos da ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar e não tem cobertura obrigatória. “Aliás, a maioria dos planos não indica, claramente, quais empresas de home care são cobertas. Ou seja, enquanto o usuário pode escolher qual hospital ou laboratório deseja usar, no caso do atendimento domiciliar ele não tem essa opção. É o plano que determina quem prestará o serviço e, logicamente, essa decisão é baseada no preço. Além disso, da noite para o dia o plano pode descredenciar determinada empresa e não há como questionar, uma vez que não foi mencionado quais seriam as prestadoras de atenção domiciliar cobertas pelo plano. Existe uma fragilidade organizacional, inclusive do sistema de saúde, que deixa a atenção domiciliar muito dependente das fontes pagadoras”, ele alerta.
A saída para a crise
Muito se tem discutido a respeito das dificuldades do setor. Mas, para Flauzino, a incidência das glosas indevidas, bem como a retenção e atraso no pagamento deveriam ser as últimas alternativas. “Antes disso as operadoras deveriam buscar outras soluções, como controle de fraudes, melhora na eficiência, nos contratos e na operação, entre outras. E a discussão sobre o prazo de pagamento não pode ser unilateral, alguém tem que mediar e determinar, por exemplo, que se houver glosa indevida, o pagamento do recurso deverá ter correção por índice de inflação. Afinal, se eu não pago o boleto de aluguel, da escola ou do plano de saúde, eu arco com juros, certo? Os dois lados precisam ter regras claras, tanto em relação aos seus direitos quanto com as suas obrigações”.
Já Sheila Lopes, da CaptaMed, salienta a importância de juntar todos os players para encontrar uma solução. “Precisamos buscar uma atuação política para regulamentar o setor. Quando a gente vê os cenários externos de outros sistemas de saúde, é nítido o fortalecimento do movimento ‘saúde é realizada em casa’ e essa descentralização do cuidado hospitalar para o domicílio. É preciso mudar, colocar no rol, estabelecer políticas e parcerias com o Programa “Melhor em Casa”, que é a política pública do SUS, mostrar valor para as operadoras, de forma a conseguir negociar melhores condições de remuneração. Acredito, ainda, que seja importante mudar um pouco o escopo da atenção domiciliar, trazendo maior responsabilidade também para a família”, ela diz.
Domingues conta que a Qualivida segue buscando alternativas para ganho de escala e capilaridade de forma cada vez mais inteligente, e discutindo com as operadoras sobre esse processo de mudança. “Acreditamos que a saúde precisa ser reinventada. É importante enxergar, por exemplo, que o serviço de saúde em casa não envolve, apenas, o atendimento de alta complexidade. Existe uma série de outros serviços, mais simples, que podem ser prestados no home care”.
Flauzino, no entanto, destaca outro aspecto importante: a necessidade de avançar nos modelos contratuais, com a oferta de pacotes que tenham compartilhamento de risco, medição de resultado e de valor, entre outros quesitos. “É preciso subir o nível e discutir modelos de remuneração. Por exemplo, se eu me comprometi que o paciente teria alta em 30 dias, mas ele teve em 40 dias, eu mesmo vou pagar parte da conta porque não foi isso que eu combinei”.
Por fim, o diretor-executivo da Home Doctor alerta para o envelhecimento populacional e a sobrecarga do sistema de saúde, que sofre com hospitais lotados. “Diante da transformação digital, o atendimento em casa tem se tornado cada vez mais eficiente. A atenção domiciliar deveria ser vista como uma solução para a crise do setor”, ele conclui.