O Ministério Público Federal (MPF) apresentou na última terça-feira (30/4) um recurso contra uma decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) que restabeleceu os efeitos da Resolução 2.378/2024, do Conselho Federal de Medicina (CFM). A norma proíbe médicos de realizarem a assistolia fetal em procedimentos de interrupção de gestações com mais de 22 semanas nos casos de aborto previsto em lei.

No documento, o MPF menciona que há excesso de poder na resolução do CFM, uma vez que a conduta ”excedente” do Conselho afeta não apenas a relação entre os diferentes níveis hierárquicos dentro do próprio órgão, mas aspectos aos quais a ele não cabe regular.

Cita também que a legislação não conferiu ao CFM, de nenhum modo, o poder regulamentar para, dentro do exercício da fiscalização ético-profissional, restringir o direito ao aborto legal, previsto no Código Penal. Destaca, ainda, que em grande parte dos casos em que o aborto não é realizado antes da 22ª semana de gestação, isso se deve ”única e exclusivamente às barreiras existentes, sem qualquer relação com a vontade da menina ou mulher vítima de estupro”.

De acordo com o Ministério Público, o resultado dessa conduta é ”a imposição de sofrimento e violação a direitos, especialmente, a mulheres, crianças e adolescentes que já se encontram em posição de vulnerabilidade social”.

O MPF também argumenta que a resolução do órgão não só excede o poder regulamentar do Conselho Federal de Medicina, mas também infringe princípios estabelecidos no Código de Ética Médica, normativo do próprio CFM.

Sustenta ainda que a normativa extrapola suas prerrogativas regulatórias e afronta os preceitos ético-jurídicos que norteiam a prática médica, comprometendo a independência profissional e a obrigação de assegurar a excelência no exercício da medicina, o que, sob a ótica jurídica, representa uma transgressão às bases legais que fundamentam a autonomia e a integridade da profissão médica.

Também salienta que ”não há dúvidas acerca do perigo de dano gerado pela decisão que atribuiu efeito suspensivo ao recurso, na medida em que quanto maior o tempo gestacional, maior o risco de complicações para saúde e a vida das meninas e mulheres na realização da interrupção da gravidez resultante de estupro”.

Desse modo, pede que seja reconsiderada a decisão do TRF4, com o indeferimento do pedido de atribuição suspensivo ao agravo de instrumento. Também sinaliza que, em caso de manutenção da decisão, requer que seja submetido o agravo interno à apreciação do colegiado. Leia o recurso na íntegra.

O agravo de instrumento tramita com o número 5013417-43.2024.4.04.0000.

Decisão que restabeleceu a resolução do CFM

Na decisão, o desembargador Cândido Alfredo Silva Leal Junior restabeleceu os efeitos da resolução, argumentando que o tema, de grande complexidade e relevância nacional, já está em discussão pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e requer “um debate mais amplo e aprofundado”.

Além disso, Leal Junior pontuou que não “parece oportuno que, em caráter liminar, e sem maiores elementos, o juízo de origem suspenda os efeitos” de uma resolução do CFM. Também ressaltou que casos específicos que tratam da norma poderão ser discutidos individualmente, considerando as circunstâncias particulares de cada caso.

“O que se busca agora evitar é que, por meio de decisão singular com eficácia e abrangência em todo o território nacional, seja suspensa norma que guarda relação com matéria objeto de discussão em ADPF, e em relação à qual o STF não deferiu medida cautelar para suspender os efeitos do ato questionado, escreveu na decisão.

Anteriormente, em 18 de abril, a juíza Paula Weber Rosito, da 8ª Vara Federal de Porto Alegre, havia suspendido os efeitos da resolução. Ela sustentou que o CFM excedeu o seu poder regulatório e que a ausência de legislação civil acerca do procedimento, bem como de restrição quanto ao tempo de gestação, impede o conselho de estabelecer proibições não previstas em lei.

Pedido anterior do MPF quanto a anulação da resolução do CFM

O Ministério Público Federal (MPF) havia ajuizado no dia 8/4, em conjunto com a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) e o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), uma ação civil pública contra a Resolução 2.378/2024 do CFM.

Na ação, o MPF pedia a nulidade da resolução do órgão que, ”a pretexto de regulamentar ato médico, inviabilizava a realização de aborto em meninas e mulheres vítimas de violência sexual, em casos de estágio avançado de gravidez”.

Um dos objetivos do MPF e das entidades relacionadas à saúde com a ação era a de afastar restrições indevidas de acesso à saúde por vítimas de estupro que engravidem, impedindo que consigam realizar o procedimento de forma célere e em conformidade com a previsão legal.

A ação conjunta destaca que, ao editar a norma, o CFM ”usurpou competência do Congresso Nacional para legislar sobre o tema”. Além disso, afirma que ”ao limitar indiretamente o acesso ao aborto legal, a resolução acrescentou uma barreira à integralidade de cuidados à saúde, violando o Código de Ética Médica e tratados internacionais de Direitos Humanos”. “O Estado e a comunidade médica devem assegurar o acesso ao procedimento abortivo de forma segura, rápida e sem burocracia”, afirma o documento.

Por fim, argumentaram que a instabilidade jurídica gerada pela edição da norma acabaria por retardar ainda mais a realização do aborto legal, levando eventualmente à necessidade de aguardar uma autorização judicial para que os médicos pudessem realizar o procedimento, da forma que entendem mais adequada, sem o risco de sanções pelo conselho de classe.

Entidades já haviam acionado o STF

A Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) e outras entidades relacionadas à saúde apresentaram no dia 5/4 um pedido de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no Supremo Tribunal Federal (STF) em relação à resolução do CFM.

No documento, as entidades argumentaram que a norma do CFM, que impede a realização de assistolia fetal (procedimento que consiste na aplicação de um produto químico que induz à parada do coração do feto em abortos legais) acima de 22 semanas de gestação, contraria expressamente as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS). “A OMS expressamente estabeleceu o procedimento como sendo o melhor padrão em termos de medicina baseada em evidências e como parâmetro civilizatório científico para os seus estados membros”, afirma o texto.

A liminar apresentada, assinada também pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e pelo Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), destaca que a decisão fere o direito fundamental à saúde e o acesso ao melhor cuidado possível. No documento, as entidades também apontaram que, desde a publicação da resolução, foram registrados ao menos quatro casos de meninas que foram vítimas de estupro, que não conseguiram fazer o procedimento antes das 22 semanas gestacionais, “e estão impossibilitadas de efetivar seu direito, previsto desde 1940”.