Aprovada em 14 de outubro de 2023 pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, a discussão da PEC do Plasma (10/2022), que permite a venda de plasma humano e abre a possibilidade da participação do setor privado na comercialização, não será analisada no plenário da Casa até que um impasse na votação da proposta na própria CCJ seja resolvido.

Após a votação que aprovou a PEC na comissão por 15 votos favoráveis e 11 contrários, o senador Marcelo Castro (MDB-PI), que é contrário ao projeto, levantou uma questão de ordem, apontando uma divergência entre o texto votado no dia 4 de outubro na CCJ e as informações divulgadas sobre o relatório e registradas nas notas taquigráficas da reunião. Segundo ele, o texto final da proposta não incorporou as sugestões de mudanças apresentadas durante a discussão.

Na discussão em questão, o senador apontou uma divergência quanto ao entendimento sobre a comercialização do plasma. ”O ponto de vista que nós defendíamos foi derrotado. Isso é da democracia, isso é legítimo. Mas o que está escrito no texto (eu posso submeter o texto a 100 professores de português, e eu duvido que um professor de português interprete diferente) está permitindo que o sangue humano, o plasma humano, seja comercializado”, apontou o senador.

De acordo com Castro, segundo o seu entendimento e as notas taquigráficas da proposta, os senadores aprovaram ”uma proposta” e o parecer da senadora Daniella Ribeiro ”trouxe outra coisa”.

A senadora e relatora da PEC, Daniella Ribeiro (PSD-PB), disse na ocasião estar ”surpresa” com a questão de ordem levantada pelo senador e reforçou que o texto publicado reflete a votação da CCJ. Ela afirmou ter retirado do texto final a remuneração ao doador e que a PEC, caso aprovada, permitirá o aproveitamento do plasma que hoje, segundo ela, ”é jogado no lixo”.

Após a questão de ordem ser levantada pelo senador Marcelo Castro, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), encaminhou um ofício à CCJ para manifestação do presidente do colegiado, o senador Davi Alcolumbre (União-AP), informando que aguardaria o desfecho da questão para a proposta ser então pautada em sessão Plenária.

”Não me cabe entrar nesse mérito sem o pronunciamento da própria Comissão de Constituição e Justiça. Então, recolho a questão de ordem, daremos esse encaminhamento e o compromisso de que essa proposta de emenda à Constituição não irá a Plenário enquanto não se houver solucionado a questão de ordem”, declarou o senador.

O que dizia o texto original da PEC do Plasma
A PEC 10/2022, de autoria do senador Nelsinho Trad (PSD-MS), altera o art. 199 da Constituição Federal para dispor sobre as condições e os requisitos para a coleta e o processamento de plasma humano.

Atualmente, a Constituição Federal prevê que uma única lei deverá tratar da remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas e coleta de sangue e derivados para fins de transplante, pesquisa e tratamento, vedando expressamente a comercialização desses produtos.

A PEC prevê a exclusão do plasma da proibição de comercialização definida pelo art. 199 da Constituição. Além disso, o texto original da proposta exclui os termos ”pesquisa e tratamento” e insere um novo parágrafo determinando que uma lei específica teria de estabelecer condições e requisitos exclusivos para a coleta e processamento de plasma humano.

Desse modo, o art. 199 da Constituição passaria a vigorar com a seguinte redação: ”Art. 199. …………………………………………..…………………………………………………………..
§ 4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, bem como coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados para fins de tratamento, sendo vedado todo tipo de comercialização.
§ 5º A lei disporá sobre as condições e os requisitos para coleta e processamento de plasma humano pela iniciativa pública e privada para fins de desenvolvimento de novas tecnologias e de produção de biofármacos destinados a prover o sistema único de saúde. (NR)”

Substitutivo da PEC do Plasma aprovado na CCJ
O novo substitutivo apresentado pela senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB) e aprovado na sessão da CCJ exige uma legislação específica para regulamentar a utilização de plasma humano para desenvolvimento de novas tecnologias e produção de medicamentos destinados ao SUS.

No debate que durou quase três horas, os senadores da comissão discutiram sobre a possível comercialização e abertura às empresas privadas para a coleta e processamento do plasma. No que se refere à comercialização, a senadora acatou integralmente a emenda proposta pelo senador Otto Alencar (PSB-BA), que permite às iniciativas pública e privada negociar o plasma humano para fins de uso laboratorial, desenvolvimento de novas tecnologias e produção de medicamentos hemoderivados destinados a prover o SUS.

A emenda ainda estabelece que a iniciativa privada deverá atuar em caráter complementar à assistência em saúde, mediante demanda do Ministério da Saúde e cumpridas as normas regulatórias vigentes. A senadora acatou uma outra emenda que reinsere no texto constitucional a permissão para utilização em ”pesquisa e tratamento” de órgãos, tecidos, substâncias humanas e outros derivados de sangue, como glóbulos brancos, glóbulos vermelhos e plaquetas. Contudo, ficou mantida a proibição de comercialização desses itens.

Assim, o art. 199 da Constituição passaria a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 199. …………………………………………..…………………………………………………………..
§ 4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização, com exceção ao plasma, na forma do §5º.
§ 5º A Lei disporá sobre as condições e os requisitos para a coleta, o processamento e a comercialização de plasma humano pela iniciativa pública e pela iniciativa privada, para fins de uso laboratorial, desenvolvimento de novas tecnologias e de produção de medicamentos hemoderivados destinados a prover preferencialmente o SUS.
§6º Para a realização das atividades previstas no §5º e visando a assistência em saúde do SUS, a iniciativa privada poderá atuar de maneira complementar, mediante demanda do Ministério da Saúde, cumpridas as normas regulatórias vigentes.(NR)”

Leia o parecer substitutivo aprovado pela CCJ do Senado na íntegra.

O que é o plasma
O plasma corresponde pela maior parte do sangue, 55% de sua composição, e tem como papel central levar nutrientes, hormônios e proteínas aos órgãos do corpo, através do sistema circulatório. Ele é indicado no tratamento de pacientes com distúrbios de coagulação, púrpura trombocitopênica trombótica, entre outros, e como insumo para produção de medicamentos.

A mudança proposta na PEC do Plasma teria como objetivo ampliar o acesso a hemoderivados e compensar a baixa produção da Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás), estatal criada em 2004, para desenvolvimento e produção de medicamentos homoderivados e biotecnológicos.

A relatora, senadora Daniella Ribeiro, afirma que a produção de medicamentos hemoderivados é uma questão estratégica e a relevância do tema “transcende a esfera sanitária, envolvendo também aspectos de segurança nacional e de balança comercial, em virtude da dependência externa no suprimento desses produtos”.

Para Ribeiro, a pandemia evidenciou a dependência externa de produtos e insumos, e, apesar de investimentos robustos na Hemobrás, ainda não é possível produzir no Brasil a quantidade necessária de medicamentos para os usuários do SUS.

O que diz o setor privado
Favorável ao projeto, a Associação Brasileira de Bancos de Sangue (ABBS) defende a participação do setor privado na coleta e comercialização do plasma, e argumenta que o país atualmente não tem a tecnologia necessária para se tornar autossuficiente na produção de hemoderivados.

Segundo a entidade, o Brasil depende da importação de R$ 1,5 bilhão em insumos. “A importação só ocorre porque nos últimos cinco anos, 65% do plasma doado foi desperdiçado sem que o país produzisse um único hemoderivado. Ou seja, o Brasil não tem tecnologia para processar o próprio plasma e se tornar autossuficiente na produção de medicamentos e insumos a partir dele”, diz a associação em nota.

A Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH) se manifesta de forma favorável ao projeto, mas contrária à remuneração da doação. De acordo com a entidade, a coleta de plasma no Brasil é atualmente insuficiente para suprir a demanda, sendo que seriam necessários pelo menos 1 milhão de litros.

”A PEC vai permitir a participação da iniciativa privada na construção de novas fábricas para suprir essa carência. A construção de mais fábricas criará o sinergismo necessário entre os setores público e privado, garantindo um atendimento adequado aos pacientes brasileiros”, afirma a ABHH em nota.

A entidade também entende que a PEC 10/2022 permite uma resposta mais adequada às necessidades de tratamento dos pacientes, abrindo a possibilidade de participação privada que, somada às inciativas públicas já em curso, permitirá enorme avanço ao país, que poderá atingir a autossuficiência em hemoderivados, que foi proposta como objetivo de política de saúde pública pela primeira vez em 1980.

Posicionamentos contrários à PEC do Plasma
O Governo Federal se posicionou contra a comercialização e remuneração na coleta de sangue ou de plasma, alegando que a atividade “desestruturaria a política nacional de sangue, referência mundial pela sua excelência e capacidade de atender a todos os brasileiros” e destacou a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) pelo caráter voluntário das doações de sangue.

Em entrevista exclusiva ao JOTA, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, afirmou que as propostas apresentadas no projeto colocam em risco a segurança do sangue no país, não apenas da qualidade, mas da disponibilidade para pessoas que precisam de transfusões ou de hemoderivados. “Hoje, nós temos um contexto que permite que o Brasil tenha algo que muitos países não têm, que é a autossuficiência em hemoderivados”, ressaltou a ministra.

A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) também é contra o projeto e alerta que a sua aprovação pode causar impacto negativo nas doações voluntárias de sangue. “Há estudos que sugerem que, quando as doações são remuneradas, as pessoas podem ser menos propensas a doar por motivos altruístas”, afirma a fundação em nota.

O Conselho Nacional de Saúde (CNS) também se posicionou de forma contrária ao projeto, ressaltando, em nota, que a Constituição Federal proíbe todo o tipo de comercialização de órgãos, tecidos e substâncias humanas. ”A PEC altera o artigo 199 da Constituição, que dispõe sobre as condições e os requisitos para coleta e processamento de plasma para permitir que isso seja feito pela iniciativa privada. Atualmente a coleta e processamento de conteúdo sanguíneo fica a cargo da Hemobrás”, afirmou em nota.

À época do início da discussão do tema em abril de 2023, a Hemobrás também emitiu uma nota se manifestando contrária à PEC do Plasma, ”entendendo que a doação de sangue altruísta e voluntária é uma cláusula pétrea que não deve ser alterada, não havendo, assim, espaço para doação remunerada”. ”A justificativa dos defensores da PEC é o não aproveitamento industrial do plasma no período que vai de 2016 a 2020”, declarou.

”Essa situação não existe atualmente, pois o beneficiamento tem ocorrido regularmente e os hemoderivados já estão sendo utilizados pelos pacientes do SUS. O projeto de pagamento para obtenção de plasma poderá afetar o equilíbrio do sistema transfusional acarretando, por consequência, indisponibilidade de sangue aos hospitais. A consolidação da indústria nacional de hemoderivados depende do maior fortalecimento da hemorrede e não da reorientação de uma política exitosa que vem sendo implantada nos últimos quarenta anos. O plasme é componente sanguíneo, não uma mercadoria”, afirmou a Hemobrás em nota.

Além dessas entidades, também se posicionaram contra a PEC do Plasma o Ministério Público Federal, o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).