Com o advento da Lei 14.454/22, que alterou a Lei 9.656/98 (Lei dos Planos de Saúde), quanto à extensão de cobertura de procedimentos e tratamentos de saúde não elencados no rol da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), que regulamenta e normatiza os planos privados de assistência à saúde no Brasil, emergiu o intenso debate sobre a aplicabilidade dos critérios previstos no §13, incisos I e II da supracitada legislação e as implicações jurídicas tencionadoras afetas aos pacientes portadores de doenças raras e ultra-raras.

Nos termos da Portaria nº 199/2014, do Ministério da Saúde, que institui a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, considera-se referida condição, as doenças que atingem 65 pessoas a cada 100 mil indivíduos, sendo em sua grande maioria enfermidades de origem genética, o que enseja na maior especificidade das condutas clínicas e de tratamento disponíveis a este índice tão restrito da população afetada.

Dentre as doenças raras podemos citar a AME (Atrofia Muscular Espinhal), doença genética autossômica que acomete 1 a cada 10 mil nascimentos; fibrose cística, doença genética recessiva, com incidência de 1 a cada 10 mil nascimentos; ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica), doença que acomete o sistema nervoso de forma progressiva e degenerativa com prevalência de 1 caso para cada 50 mil indivíduos; distrofia muscular de Duchenne, doença genética degenerativa dos músculos que controlam os movimentos, com índice de 3 casos a cada 100 mil pessoas; epidermólise bolhosa, alteração molecular genética que causa bolhas e erosões na pele, com 11 casos por milhão de habitantes; sarcoma de Ewing, neoplasia maligna de tecidos moles de origem genética, que afeta 1 a cada 1 milhão de pessoas, entre outras doenças de asseverada gravidade.

Infere-se que, em se tratando de doenças com baixa prevalência, os medicamentos e tratamentos de saúde direcionados às enfermidades são limitados. Ademais, aludida ocorrência é extensível aos estudos clínicos classificados na ordem de I a IV, sendo a última etapa a de vigilância pós-comercialização.

E visto o percentual escasso de indivíduos aptos para a pesquisa, tais condições e características obstam os desfechos necessários à conclusão destes estudos, reverberando o entrave ao acesso dos pacientes raros e ultrarraros às tecnologias em saúde, visto a complexidade das demandas terapêuticas para este grupo.

Os estudos clínicos são altamente necessários devido aos níveis de evidência que interferem na tomada de decisão para a recomendação de um medicamento ou tratamento de saúde, o que categorizados em ordem decrescente de nível de evidência, podemos elencar:

  1. revisão sistemática ou metanálise de todos os ensaios clínicos randomizados controlados;
  2. ensaios clínicos controlados e randomizados,
  3. ensaios clínicos controlados sem randomização;
  4. coorte de estudos analíticos de casos controle;
  5. evidências de revisão sistemática de estudos descritivos e qualitativos,
  6. evidências de estudo único descritivo e qualitativo e
  7. opinião de especialistas.

Referida situação coloca as doenças raras e ultra-raras num espectro de relativização quanto à análise das evidências clínicas acerca dos tratamentos, considerando que para tais patologias inexistem protocolos isolados ou pré-estabelecidos, o que invoca a revisão pormenorizada dos estudos alusivos a estes grupos de doenças, pois ainda que limitado o nível de estudos, tal fato não conduz a ausência de comprovação de eficácia, evidência, segurança e acurácia à luz da medicina baseada em evidências, o que atrai a análise de dados de mundo real (real world data) e evidências de mundo real (real world evidence), na tomada de decisões em pesquisas clínicas destinadas à saúde, estrutura criada pelo FDA (Food and Drug Administration), agência americana que regula dentre outros produtos, os medicamentos que serão comercializados em seu território.

Medicamentos órfãos

Neste cenário, impende destacar os medicamentos denominados órfãos, fármacos desenvolvidos para o tratamento das doenças raras e ultrarraras. Contudo, haja vista a limitação dos casos e o número exíguo de pacientes que necessitam destas medicações, não há um investimento massivo pela indústria farmacêutica para o estudo e desenvolvimento de tecnologias farmacológicas, o que conduz anteparo limitador de acesso aos portadores de doenças raras aos tratamentos de saúde tão imprescindíveis e necessários.

No âmbito jurídico, importante relevo foi alcançado com o advento da Lei 14.454/22, que incluiu no §13, da Lei 9.656/98 (Lei dos Planos de Saúde), a possibilidade de cobertura extra rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS, responsável pela regulação dos planos privados de saúde comercializados no Brasil.

O rol de procedimentos e eventos em saúde, atualmente vigente pela Resolução Normativa 465/21 e alterações posteriores de regulamentação e inclusão, elenca as coberturas mínimas obrigátorias a serem observadas pelas operadoras de planos de saúde em relação aos seus beneficiários, impondo asseverar que, antes da Lei 14.307/22, as tecnologias e diretrizes de utilização terapêutica eram atualizadas a cada dois anos, o que limitava o acesso dos usuários aos avanços da medicina traduzidos em tratamentos mais eficazes, efetivos e com menor toxicidade.

Neste sentido, o §7º, da Lei 14.307/22, trouxe relevante modificação na Lei 9.656/98, determinando que o processo de atualização do rol da ANS seja concluído no prazo de 180 dias e para as tecnologias em saúde concernentes aos tratamentos quimioterápicos, a redução para o prazo de 120 dias, visto a urgência e gravosidade das doenças neoplásicas, conforme previsto no §8º, cuja redação foi incluída pela lei supracitada.

Com a pacificação do entendimento acerca da exemplificidade do rol, também denominada taxatividade mitigada, conforme posição exarada pelo Superior Tribunal de Justiça, que excepciona a possibilidade de cobertura de tratamentos ou procedimentos que sejam prescritos pelo médico assistente e que não estejam contemplados no rol da ANS, tem-se a aplicabilidade nas seguintes hipóteses:

  • comprovação de eficácia à luz das ciências da saúde com base em evidência científica e plano terapêutico ou,
  • recomendação pela Conitec ou de um órgão de avaliação de tecnologia de saúde de renome internacional, desde que aprovados para seus nacionais.

É notório que, em se tratando de doenças raras e ultra-raras, é imperativo inafastável para as demandas judiciais em saúde, que o relatório médico elaborado pelo profissional que assiste o paciente seja guarnecido dos estudos clínicos que respaldam a prescrição, pois a limitação de estudos não enseja na ineficácia nem ausência de evidência quanto ao tratamento indicado, o que em sua maioria são moléstias de ordem genética e de natureza grave ou gravíssima, o que conduz à celeridade do tratamento e do risco de óbito a que estes pacientes são expostos, caso não sejam submetidos a linha terapêutica do médico prescritor.

Obrigação em caso de urgência

Nesta senda, a Lei 9.656/98 assegura a obrigatoriedade de cobertura pelas operadoras de planos de saúde, nos casos de urgência e emergência, cuja guarida é prevista nos artigos 35-C e 35-F, da Lei dos Planos de Saúde, e ainda, conforme disposto pela Resolução 1451/95, do Conselho Federal de Medicina, o que invoca típica conduta abusiva, a negativa promovida pelos planos privados de saúde, em evidente violação aos princípios da boa-fé e equidade e ainda, havendo cláusulas manifestamente onerosas e que coloquem os consumidores em desvantagem exagerada devem ser declaradas nulas, com supedâneo no artigo 51, incisos I e IV, da legislação consumerista.

Ressalta-se ainda para os casos inespecíficos de doenças de baixa prevalência a possibilidade do uso off label de medicamentos, costumeiramente denominados “fora de bula”, cuja finalidade terapêutica é diversa da constante no documento, que segue as diretrizes da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 47/2009, da Anvisa, inexistindo vedação para o uso, vez que a inclusão do registro para outras doenças não elencadas em bula é prerrogativa da farmacêutica detentora da tecnologia que envia para a submissão e análise do órgão de vigilância sanitária, os pedidos de inclusão de novas indicações de uso.

Imperioso consignar que a ausência especificada em bula não retrata a ineficácia ou ineficiência do medicamento para o tratamento de determinada doença, visto que, para outras agências reguladoras internacionais, haja a chancela para o uso e estudos embasadores para a prescrição médica e ainda, uma vez que o fármaco já passou pelo crivo da Anvisa, agência reguladora responsável pelo controle sanitário, autorização de registro e comercialização de medicamentos e insumos farmacêuticos no âmbito nacional, resta certificada a segurança, eficácia e qualidade dos produtos.

Sobre a aludida temática, assente o STJ sobre a obrigatoriedade de cobertura dos tratamentos de saúde, ainda que prescritos para uso off label ou experimental, vez que compete ao médico prescritor determinar a linha terapêutica a ser adotada ao caso específico do paciente, considerando a ausência de substituto terapêutico para a moléstia que o acomete.

Quanto ao segundo requisito elencado no §13, da Lei 14.454/22, não cumulativo, sobre a recomendação do procedimento pela Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS), ou de órgão de avaliação de tecnologia em saúde de renome internacional, imperiosa a amplificação do debate, sobremaneira quanto ao processo de ATS (Avaliação de Tecnologia em Saúde), que engloba as seguintes vertentes: análise clínica (segurança, efetividade, eficácia, indicações, população beneficiada e demais resultados); econômica (custo-eficiência, custo-efetividade, custo-utilidade, custos de oportunidade e impacto orcamentário); paciente (impacto social, ética, conveniência, aceitabilidade, reações psicológicas) e organizacional (difusão, logística, aceitabilidade, capacitação, utilização e sustentabilidade).

Em síntese, a ATS é o processo de avaliação de tecnologias em saúde versando sobre os tratamentos que serão disponibilizados na saúde pública, mediante recomendação de incorporação pela Conitec e disponibilizados via Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas estabelecidos para cada tipo de doença.

Embora o artigo 15, do Decreto 7.646/2011, disponha sobre o processo administrativo de incorporação, exclusão e alteração das tecnologias em saúde e das etapas necessárias, e ainda, do prazo de 180 dias para a oferta no SUS, após publicação da decisão para incorporação da tecnologia em saúde, previsto no artigo 25, cediço pelos operadores do direito da saúde que este interregno temporal não é efetivo na prática, conquanto a tecnologia seja aprovada no âmbito da eficácia, segurança efetividade e acurácia, tais fatores resvalam no custo-efetividade em disponibilizá-la no SUS, considerando o impacto financeiro ao erário público.

Tais condicionantes são fatores de entrave à dispensação das tecnologias tanto na saúde pública como na saúde suplementar em tempo hábil, dificultando o acesso dos pacientes aos avanços da medicina e aos tratamentos mais assertivos ao seu quadro clínico, o que ratifica o entendimento consolidado pela Lei 14.454/22, no que tange à exemplificidade do rol da ANS e o dever de cobertura de terapêuticas não previstas no elenco, porém imprescindíveis à salvaguarda da vida do beneficiário do plano de saúde.

Em relação ao escopo do inciso II, do § 13, da Lei 14.454/22, relativo aos órgãos de avaliação de tecnologias em saúde de renome internacional, tal conceituação ampla denota dúvida sobre quais serão categorizadas e elegíveis à espécie legal, dentre os quais pela relevância e importância internacional podemos citar o FDA (Food and Drug Administration) dos EUA, Health Canada, do Canadá, EMA (Agência Européia de Medicamentos), e inúmeras outras agências regulamentadoras existentes pelo mundo, o que comporta numa maior apreciação pelo Poder Judiciário, a fim de consolidar a hipótese legal à sua premente finalidade.