A CPI da Pandemia foi um importante instrumento de investigação conduzido pelo Senado Federal para apurar responsabilidades por ações e omissões no combate à Covid-19. Como resultado de seus trabalhos, o relatório final sugeriu o indiciamento de diversos agentes públicos e privados e, em outra frente, recomendou a aprovação de projetos de lei ligados aos fatos apurados.

Dentre as proposições constantes no relatório, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) menciona o PL 3590/2021, de autoria do senador Rogério Carvalho (PT-SE), que “estabelece mecanismos para coibir a interferência das Operadoras de Plano de Assistência à Saúde [OPS] nos tratamentos oferecidos aos pacientes, nos casos de integração vertical em saúde suplementar”.

Os 12 artigos do projeto alteram diversos pontos regulatórios relativos à relação entre hospitais e planos de saúde, inclusive por meio da inclusão de um novo inciso no art. 36 da Lei 12.529/2011, a Lei de Defesa da Concorrência (LDC). Neste último caso, a ideia é adicionar entre os exemplos de infração à ordem econômica previstos na LDC “a obtenção de posição dominante mediante integração vertical em saúde suplementar, nas situações em que haja interferência” de OPS na qualidade dos tratamentos.

O PL ainda define integração vertical em saúde suplementar como a oferta de serviços de saúde em unidades de OPS que pertençam ao mesmo grupo empresarial ou que ostentem a mesma logomarca.

Segundo a justificativa do projeto, seu objetivo é coibir os efeitos negativos da integração vertical, tendo em vista a percepção de que a formação de rede própria tem possibilitado às OPS “maior controle sobre os tratamentos que são conduzidos pelos médicos”. Nesse contexto, a proposição visa a implementar medidas de diversas naturezas, voltadas a mitigar casos de interferência dos agentes verticalmente integrados nos serviços médicos. Sem entrar no mérito sobre as demais, discute-se aqui a proposta de alteração da LDC.

A despeito da preocupação louvável com a garantia da qualidade dos serviços de saúde, sobretudo dado o contexto da pandemia, da perspectiva da proposta de alteração da LDC o remédio eleito pelo projeto se mostra equivocado, confrontando os princípios e a lógica que regem o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC).

A proposta de alteração da LDC, tal qual desenhada, apresenta quatro vícios principais: desrespeita a natureza intersetorial e a posteriori do controle de condutas desempenhado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade); adota um conceito de verticalização formalista e fechado; desconsidera a natureza dos arranjos verticais sob a ótica antitruste; e distorce o sistema de distribuição de competências regulatórias nesse setor.

A legislação antitruste brasileira, a exemplo do que ocorre em diversas jurisdições, não estabelece de maneira exaustiva as condutas enquadradas como ilícito antitruste, nem se dirige a comportamentos delimitados a mercados específicos. Embora forneça exemplos de condutas vedadas em seu art. 36, §3º, a LDC adota como técnica uma tipificação aberta e compreensiva, focada mais nos possíveis efeitos das práticas do que em sua descrição precisa.

Essa técnica legislativa é condição essencial para que o Cade possa cumprir sua missão institucional, intervindo, de modo transversal, em todas as atividades econômicas, por meio da análise a posteriori das condutas dos agentes. Ou seja, diferentemente do que ocorre com as agências reguladoras, que estabelecem tipos fechados de infração em vista de balizar a priori o comportamento dos agentes de um mercado em específico, o controle de condutas do Cade, o qual não dispõe de poder normativo amplo, é transetorial e tem por objeto a avaliação das condutas a posteriori, primordialmente em vista de seus potenciais efeitos à concorrência.

A alteração pretendida pelo art. 10 do PL representaria, antes de tudo, exceção injustificada à natureza do ilícito antitruste, necessariamente maleável para que se possa dar conta da amplitude e dinamicidade das muito diversas atividades empresariais passíveis de sanção pelo Cade.

Em última análise, exceções como a sugerida pela proposição, além das possíveis distorções localizadas, podem representar um precedente perigoso, estimulando a inclusão de outras tipificações com o intuito de enfrentar problemas regulatórios setoriais com um remédio legislativo simplista e equivocado. Em suma, além de não ser adequado para enfrentar problemas setoriais alheios à defesa da concorrência, esse caminho arrisca comprometer a atuação do próprio Cade.

Além disso, a presunção de ilicitude que o projeto visa a instituir desconsidera a forma como a verticalização é tratada pela doutrina e jurisprudência antitruste. A integração vertical é uma forma de organização empresarial legítima e apta a gerar eficiências, pela qual atividades econômicas encadeadas ou complementares são realizadas dentro de uma mesma firma, de um mesmo grupo empresarial ou, ainda, por agentes verticalmente coordenados por meio de arranjos contratuais, prática comum em diversos mercados.

Em primeiro lugar, o projeto restringe o conceito a empresas atuantes sob mesmo grupo ou marca, dando margem a interpretações que engessem a atuação do Cade (que não raro reprime restrições verticais perpetradas por agentes formalmente independentes, mas que atuam, de fato, de forma conjunta). Em segundo, a presunção pretendida ignora as eficiências econômicas que, segundo a jurisprudência do próprio Cade e de outras agências internacionais, podem decorrer de arranjos dessa natureza: i) redução do impacto dos custos regulatórios; (ii) mitigação do problema de agente-principal derivado da assimetria de informações; (iii) redução da dupla margem e consequente possibilidade de diminuição dos preços; (iv) redução dos custos de transação; e (v) obtenção de ganhos decorrentes da melhor coordenação das atividades, de economias de escopo e de estímulos à inovação.

Justamente em função dessas possíveis eficiências, as condutas anticompetitivas associadas à verticalização, conhecidas como restrições verticais, são sempre avaliadas pelo Cade a partir da aplicação da chamada regra da razão. Assim, são sopesados potenciais benefícios e prejuízos da prática à luz das circunstâncias fáticas (poder de mercado dos agentes envolvidos, estrutura de oferta, custos de migração concorrentes etc.), a fim de aferir seus efeitos líquidos sob a ótica antitruste. Concretamente, em sua jurisprudência, a autoridade antitruste tem reconhecido que a verticalização no setor de saúde pode contribuir para atenuar falhas de mercado e gerar eficiências, o que não impediu que, em casos específicos, intervisse para mitigar riscos concorrenciais decorrentes da integração vertical, seja em sede de controle de concentrações[1], seja no exercício de sua competência repressiva[2].

Além de desconsiderar a lógica que rege o SBDC e o modo como o Cade avalia restrições verticais, a presunção de ilicitude indicada no PL pressupõe um vínculo necessário onde, na verdade, há apenas uma relação eventual entre a qualidade dos atendimentos e a existência de um ilícito antitruste.

A qualidade do serviço de saúde pode ser afetada de inúmeras formas que não possuem nenhuma relação com a existência de um ilícito antitruste, que dirá um ilícito vertical. A uma, há uma multiplicidade de situações possíveis em que ações desse tipo são adotadas por agentes verticalizados desprovidos de posição dominante (afastando a hipótese de risco à concorrência por conduta unilateral ou vertical) ou, mesmo, em que essas ações envolvam agentes que sequer são integrados verticalmente[3]. A duas, mesmo se perpetradas por agente verticalizado com posição dominante, também é fácil imaginar casos em que a queda de qualidade não estará ligada a práticas prejudiciais à concorrência, afastando a competência do Cade para enfrentá-la[4].

Isso remete, enfim, ao sistema de competências regulatórias incidentes sobre o setor de saúde suplementar. A proteção do consumidor é objeto de tutela indireta pelo Cade, por meio da proteção à concorrência, de modo que preocupações com a qualidade dos serviços médicos atraem a competência da autarquia somente quando vinculadas a efeito de atos de concentração ou a práticas com potencial lesivo à concorrência, o que independe de qualquer alteração na redação atual da LDC.

Para cada uma das diversas outras situações em que preocupações do gênero surgirem, serão acionados gatilhos para atuação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ou dos conselhos de profissionais da saúde. De modo mais amplo e difuso, podem ensejar também ações das entidades de defesa dos consumidores, do Ministério Público, das Defensorias Públicas e, reativamente, do Poder Judiciário.

Não se trata de mera formalidade. A ANS dispõe de ferramental de análise e expertise acumulada muito mais robusta e adequada do que o Cade, por exemplo, para distinguir entre, de um lado, uma controvérsia legítima entre OPS e prestador em torno do protocolo mais custo-efetivo para dada condição clínica e, de outro lado, a interferência ilegítima de OPS sobre os serviços do prestador que atentem contra a qualidade do atendimento — e consequentemente representem risco à saúde dos pacientes.

Do mesmo modo, faz mais sentido que riscos de fechamento de mercado decorrentes de concentração vertical ou de arranjos contratuais, bem como eventuais ações coordenadas entre prestadores concorrentes para homogeneizar certo aspecto de seus serviços, sejam avaliados principalmente pela autoridade concorrencial, sem prejuízo de diálogo com o regulador setorial.

Ou seja, da perspectiva daquilo que, jurídica e tecnicamente, faz sentido, atribuir ao Cade competência específica em relação à qualidade dos serviços de saúde é uma proposta legislativa inócua. Já sob a ótica do que se pretende incrementar na esfera de atuação do Cade, a proposta suscita riscos de criar conflitos de competência artificiais, para além do mencionado precedente de desvirtuação na lógica da intervenção antitruste. Como as demais disposições do PL 3590/2021 indicam, sem entrar no mérito das medidas nelas propostas, a preocupação que motivou sua propositura deve ser discutida eminentemente na esfera da regulação setorial, sendo que a aposta no Cade como alternativa não apenas não resolverá o problema em tela, como tenderá a criar novos.


[1] A título ilustrativo, no Ato de Concentração n. 08700.005705/2018-75 (Mediplan/Notre Dame), que envolvia integração vertical entre OPS e hospitais, o Cade condicionou a aprovação do caso, entre outros remédios comportamentais, à certificação de um dos hospitais envolvidos na transação segundo as regras da Organização Nacional de Acreditação (ONA), instituição independente responsável por acreditar a qualidade de serviços de saúde no Brasil. Agiu, portanto, pautado na preocupação com a garantia da qualidade dos atendimentos no âmbito de um caso de concentração vertical.

[2] No âmbito do Processo n. 08700.001743/2014-25 (Representante: Gold Imagem Diagnósticos Médicos S/A; Representada: Unimed de Catanduva – Cooperativa de Trabalho Médico) e do Procedimento Preparatório n; 08700.007522/2017-11 (Representante:                 São Francisco Sistemas de Saúde; Representados: Unimed de Assis, Hospital e Maternidade de Assis e Santa Casa de Misericórdia de Assis), por exemplo, a Superintendência-Geral do Cade condenou Unimed Catanduva e Unimed Assis, respectivamente, por abuso de posição dominante atinente à imposição de restrições verticais em face de prestadores credenciados que tinham dependência das OPS para acessar parcela muito relevante dos consumidores.

[3] Por exemplo, sendo a qualidade um aspecto concorrencialmente relevante, se um conjunto de hospitais ou laboratórios concorrentes fizer um acordo para homogeneizar determinado aspecto de seus serviços (protocolos de atendimento, marcas de OPME utilizados ou medicamentos ministrados etc.), deixando de competir em torno dele, seriam relevantes os riscos de configuração de um cartel, que ensejaria a análise da conduta pela regra per se, abordada no segundo tópico desta seção. Note-se que um risco concorrencial dessa natureza despertaria preocupações com qualidade de serviços de saúde sem ter qualquer relação com verticalizações entre OPS e prestadores.

[4] Vale lembrar que a LDC não veda a conquista de posição dominante, mas seu abuso sob a ótica concorrencial. Não sem razão, o §1º do art. 36 da LDC dispõe expressamente que “[a] conquista de mercado resultante de processo natural fundado na maior eficiência de agente econômico em relação a seus competidores não caracteriza o ilícito previsto no inciso II do caput deste artigo [dominar mercado relevante de bens ou serviços]”.