O mal estar provocado na semana passada depois das declarações do ministro Luís Roberto Barroso sobre o bolsonarismo em evento da União Nacional dos Estudantes (UNE) pode trazer consequências para o julgamento do piso da enfermagem.

Havia uma percepção de que o ministro, que é relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.222 proposta pela Confederação Nacional de Saúde, Hospitais, Estabelecimentos e Serviços (CNSaúde), poderia, em um eventual recurso, mudar seu entendimento

Diante dos protestos durante o evento da UNE — provocados justamente por causa de seu voto durante o julgamento do piso da enfermagem — a tendência é de que ele não altere seu entendimento.

Representantes de hospitais privados devem recorrer da decisão do plenário virtual do Supremo, tão logo os trabalhos da corte sejam retomados, em agosto.

A expectativa é de que seja pedido mais prazo para aplicação do piso da enfermagem ou, ainda, reconsideração de alguns pontos da decisão, publicada na última semana. As esperanças do setor agora estão voltadas para uma eventual decisão do plenário físico.

Outras categorias

O entendimento alcançado pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) de que novas propostas de pisos profissionais passarão a ser vistas como potencialmente incompatíveis com a Constituição coloca em dúvida o destino que será dado aos projetos que hoje tramitam no Congresso Nacional.

Durante o julgamento do piso da enfermagem, oito ministros sinalizaram que uma eventual generalização da prática de criação de pisos por lei colocaria em risco o princípio federativo e o da livre iniciativa.

Não se sabe ainda se a decisão terá impacto para alterar a tramitação das propostas no Congresso. Levantamento feito pela CNSaúde mostra haver 51 projetos sobre criação de pisos salariais para o setor.

O levantamento mostra que uma das propostas mais avançadas é o projeto de lei 1.365/2022, que eleva para R$ 10.991,19 o salário-mínimo de médicos e de cirurgiões-dentistas. O senador Nelsinho Trad (PSD-MS) antecipou ao JOTA que pretende apresentar o relatório à Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) no segundo semestre.

Há percepção de que muitos dos projetos devem continuar tramitando, o que poderia, numa outra etapa, provocar uma judicialização – a exemplo do que aconteceu com o piso da enfermagem.

O advogado constitucionalista e professor Max Kolbe avalia que a potencial inconstitucionalidade para novos pisos salariais definida pelo STF na decisão sobre a enfermagem é um pedido de cautela para o Congresso ao aprovar eventualmente novos salários mínimos nacionais.

“Não se pode afirmar, ao menos a princípio, que todas as leis que venham a tratar de piso salarial sejam consideradas, num futuro próximo, inconstitucionais pelo STF”, declarou Kolbe. “Deve haver uma uniformização, um parâmetro para que médicos, profissionais da saúde tenham (piso) a nível nacional.”

Incoerência

Além de trazer dúvida sobre o destino reservado para propostas que hoje estão em tramitação, a decisão da maioria dos ministros do Supremo abre brechas para outra argumentação, a de que também o piso da enfermagem é inconstitucional.

Para a CNSaúde, a indicação dos ministros sobre os rumos de eventuais pisos para outras categorias destoa da autorização concedida à enfermagem. “Se juízes já estão tratando como inconstitucionais iniciativas semelhantes, não faz sentido essa aprovação”, afirmou ao JOTA Marco Vinícius Ottoni, coordenador jurídico da entidade.

Para Ottoni, o posicionamento também pode indicar uma preocupação dos ministros sobre a falta de financiamento de outros pisos. “A discussão da enfermagem está se alongando justamente pela falta de recursos definidos, e isso pode se repetir com outras propostas semelhantes”, disse.

A falta de recursos para aplicação dos salários também é vista como uma dificuldade para a Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas (CMB). Pela decisão do STF, o setor público somente é obrigado a pagar os novos salários para os enfermeiros caso receba recursos da União.

A entidade aguarda o repasse de R$ 7,3 bilhões para dar início aos pagamentos, mas o governo ainda não deu previsão de quando os recursos serão liberados. “Achamos justo o pagamento, mas precisamos ter fontes para custeá-lo. O mesmo vale para outros reajustes futuros”, destacou ao JOTA Mirocles Veras, presidente da entidade.

Entenda o que ficou decidido no julgamento do piso da enfermagem no STF

O julgamento do referendo da liminar sobre o piso da enfermagem esteve em plenário virtual até o dia 30 de junho e, mesmo após o término, ainda havia ficado inicialmente indefinido como seria o pagamento do piso pela iniciativa privada. Havia consenso entre a maioria dos ministros sobre a possibilidade da negociação, mas não quanto à extensão do acordo. Por isso, a definição precisou vir via proclamação do resultado.

O ministro Luís Roberto Barroso, relator da ação, e presidente interino do tribunal, entendeu que, na ausência de uma maioria, prevalece o voto médio, redigido por ele em conjunto com Gilmar Mendes, pois se alinha mais às posições de Rosa Weber e Edson Fachin, do que a opção trazida por Dias Toffoli, no sentido do piso regionalizado.

Dessa forma, ficou estabelecido que a implementação do piso salarial da enfermagem para a iniciativa privada deve ser precedida de negociação coletiva entre patrões e funcionários. Na ausência de acordo, o valor do piso legal prevalecerá após o prazo de 60 dias, contados da data de publicação da ata do julgamento.

Quanto aos entes públicos, o piso deve ser pago a servidores da União, dos estados, dos municípios e de entidades que atendam 60% de pacientes do Sistema Único de Saúde – no caso destes três últimos, o pagamento está condicionado a repasses da União.

A insuficiência da “assistência financeira complementar” instaura o dever da União de providenciar crédito suplementar. Não sendo tomada tal providência, não será exigível o pagamento por parte dos entes.

Perguntas sobre o piso da enfermagem

Qual o valor do piso da enfermagem de acordo com a lei?

R$ 4.750 para os profissionais de enfermagem; R$ 3.325 para os técnicos de enfermagem e R$ 2.375 para auxiliares e parteiras.

A decisão tem validade imediata?

Sim. Os prazos começam a contar a partir da publicação da ata, o que foi feito no Diário de Justiça Eletrônico (DJe) desta quarta-feira (12/7).

O que está valendo para os profissionais da enfermagem do setor público?

O piso da enfermagem deve ser pago integralmente a servidores da União. No caso dos servidores dos estados, dos municípios e de entidades que atendam 60% de pacientes do Sistema Único de Saúde, o pagamento está condicionado a repasses da União.

A insuficiência da “assistência financeira complementar” instaura o dever da União de providenciar crédito suplementar. Não sendo tomada tal providência, não será exigível o pagamento por parte dos entes.

Além disso, o pagamento do piso salarial da enfermagem deve ser proporcional nos casos de carga horária inferior a 8 (oito) horas por dia ou 44 (quarenta e quatro) horas semanais.

A “assistência financeira complementar” é um abono ou entra como salário?

Pelo voto dos ministros Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes não fica clara a natureza da verba.

Enfermeiros da iniciativa privada têm regras diferentes?

Sim. Pelo voto médio vencedor, a implementação do piso salarial nacional da iniciativa privada deve ser precedida de negociação coletiva entre patrões e funcionários. Na ausência de acordo, o valor do piso legal prevalecerá após o prazo de 60 dias corridos, contados da data de publicação da ata do julgamento no Diário de Justiça Eletrônico (DJe).

 Está incluindo no valor do piso a remuneração global (vencimentos + benefícios)?

Pelo voto vencedor não há indicação que o valor seja da remuneração global, mas sim do salário em si. A ideia de que o piso compreendesse a remuneração global surgiu no voto do ministro Dias Toffoli, que não saiu vitorioso. Portanto, à princípio, não estão incluídos benefícios como vale alimentação ou vale refeição, entre outros.

Quando os profissionais de saúde pública começarão a receber?

O repasse dos R$ 7,3 bilhões provenientes de fundos para auxiliar Estados e municípios a pagarem o piso de enfermagem será feito depois de concluído o levantamento de profissionais que atuam no Sistema Único de Saúde, informou o Ministério da Saúde.

Um aplicativo desenvolvido pelo Fundo Nacional de Saúde foi disponibilizado para que Estados e municípios preenchessem indicando quantos enfermeiros, parteiras, auxiliares e técnicos de enfermagem trabalham nos serviços públicos.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) anunciou, no dia 5 de julho, durante a 17ª Conferência Nacional de Saúde, que pagará o piso da enfermagem retroativo desde maio deste ano para o setor público. Segundo o presidente, também será pago o décimo terceiro salário.

A decisão do STF é definitiva?

Ainda não. Os ministros validaram a liminar dada pelo relator, ministro Luís Roberto Barroso. No entanto, a Confederação Nacional de Saúde (CNSaúde) e Federação Nacional da Enfermagem já afirmaram que irão recorrer. Além disso, o Supremo ainda vai discutir o mérito da questão.

A decisão do STF pode abrir brecha para que outras carreiras tenham também o piso?

À princípio, não. Como o voto dos ministros Barroso e Gilmar Mendes foi considerado o voto médio e vencedor, o ponto da “inconstitucionalização progressiva” está vigente. Dessa forma, a ideia é tentar fechar as portas para outras iniciativas na direção de pisos nacionais que, segundo os ministros, “passarão a ser vistas como potencialmente incompatíveis com a Constituição” por violar a autonomia dos demais entes federativos.