A presença da variante delta no Brasil está subestimada e já afeta a curva de casos de covid-19, que tinha tendência de queda nas últimas semanas e agora esboça estabilização, afirmam especialistas ouvidos pelo Valor.

Eles dizem que ainda não é possível mensurar com exatidão o impacto nas estatísticas da pandemia, mas a experiência observada em outros países e o número de casos confirmados da nova mutação do vírus, puxado pelas ocorrências no Rio de Janeiro, são motivos de alerta. E, por isso, defendem que governadores e prefeitos interrompam a flexibilização do isolamento social para evitar novo recrudescimento da doença no país.

O mais pessimista é o médico e professor da Universidade de Duke, na Carolina do Norte (EUA) Miguel Nicolelis, que afirma que já demos início a uma nova fase crítica da pandemia, semelhante à dos meses de fevereiro e março, que classifica como terceira onda. Os números do Rio de Janeiro são os mais claros dessa tendência, mas a situação no Sudeste e no Centro-Oeste também é motivo de alerta, segundo ele.

Uma preocupação é o baixo índice de vacinação da população brasileira, apesar do maior ritmo recente. Um quarto (24,8%) da população tomou a segunda dose ou dose única, enquanto a primeira dose foi tomada por 56,2% da população. “Nos EUA, mais de 40% da população já tinha a segunda dose da vacina e mais de 60% tinham a primeira. Mas mesmo assim a variante foi capaz de encontrar pessoas mais suscetíveis, como jovens e crianças, e está avançando”, diz.

Para ele, a o ritmo de vacinação atual não é suficiente para conter o avanço da variante delta, que “caminha para se tornar hegemônica no país”. Pelos dados da Rede Genômica de 17 de agosto, a variante gama é a predominante hoje no país, com 64,1% dos casos sequenciados. A delta vem segundo lugar, com 21,7%, seguida por uma mutação da gama (7,9%). Em junho, a parcela do delta era de 2,25%. Essas informações incluem sequenciamentos feitos pela Fiocruz e outras instituições também depositados no banco global Gisaid, da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Pelas estatísticas de ontem do Ministério da Saúde, já foram identificados e notificados 1.170 casos da variante delta até ontem, em 15 estados e no Distrito Federal, mais da metade das 27 unidades da federação. O número de mortes chega a 45. O Rio de Janeiro lidera o ranking, com 431 casos, seguido por São Paulo (231), Rio Grande do Sul (147) e Distrito Federal (125). No Rio de Janeiro, o número de casos diários de covid-19 já voltou para acima de 4 mil, o que não ocorria desde maio.

Já o último Boletim Covid-19, também divulgado ontem pela Fiocruz, apontou que o Estado do Rio teve alta abrupta no número de casos – aumento médio de 3,7% ao dia nas últimas duas semanas – o que foi acompanhado pelo aumento da ocupação de leitos hospitalares. Por ora, o restante do país ainda tem recuo nessas estatísticas, informou a Fiocruz.

Diante da situação, Nicolelis considera fundamental adotar controles sanitários rígidos nas fronteiras estaduais e também interromper flexibilizações e aumentar o isolamento social. “Precisamos também de campanhas amplas para incentivar o uso de máscaras e a distribuição de máscaras de qualidade. As medidas são conhecidas, é preciso adotá-las”, diz.

A opinião é compartilhada pelo epidemiologista Pedro Hallal, professor da Universidade Federal de Pelotas e coordenador do Epicovid-19. Ele defende “um passo atrás” nas flexibilizações, com restrições de horários de funcionamento e limite de ocupação em estabelecimentos, além da proibição de público em jogos de futebol.

“A delta já chegou a todos os Estados brasileiros. Só não sabemos porque não testamos”, diz Hallal. Na sua avaliação, a delta já provoca a manutenção dos casos, mas ainda é difícil saber quem vai ganhar “o cabo de guerra” entre a variante e a vacinação. Ele vê dois cenários possíveis: um em que há aumento de casos e também de óbitos e outro em que há aumento de casos, mas a vacinação consegue conter o aumento de óbitos. “Temos um cabo de guerra, com a variante pressionando para a piora e a vacinação puxando para a melhora. A vacinação estava ganhando há algumas semanas, mas agora os números começam a estabilizar. O momento é de incerteza”, pondera.

A virologista Marilda Siqueira, chefe do Laboratório de Vírus Respiratórios e do Sarampo do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), explica que o Ministério da Saúde só registra como ocorrência de delta os casos em que o vírus teve o genoma completamente sequenciado. O procedimento é o mais seguro para atestar uma variante, mas é caro e lento, o que limita o número total de casos verificados e, portanto, a detecção da delta.

Para efeito de comparação, o recorde mensal de sequenciamentos realizados no país foi em maio, quando pesquisadores da Fiocruz e outras instituições cadastraram 5,4 mil genomas no banco global Gisaid. Em junho, quando a delta começou a ter presença relevante, foram sequenciados 3,4 mil genomas de vírus. Naquele mês, houve mais de 2,2 milhões de casos.

Uma saída para mensurar a dispersão da variante delta tem sido extrapolar seu percentual dentro do universo sequenciado para o total da população, como têm feito as iniciativas de vigilância genômica de governos e prefeituras. Com base nisso, o secretário municipal de Saúde do Rio de Janeiro, Daniel Soranz, afirmou nesta semana que cerca de 56% dos casos registrados na cidade eram de delta.

Para Marilda, os números da Fiocruz e os do Rio de Janeiro não deixam dúvidas sobre o ritmo acelerado de expansão da delta no país. Embora concorde com o diagnóstico, o físico e pesquisador em saúde Marcelo Gomes, também da Fiocruz, adverte que os percentuais de delta, pelo menos os detectados pela Fiocruz, estão inflacionados porque os esforços de sequenciamento são direcionados para a detecção dos chamados “casos inusitados”, como de viajantes internacionais, pessoas com quem tiveram contato ou quem morreu de covid-19 sem fator de risco aparente.

“Essas amostras tendem a concentrar mais variantes novas. Então, hoje é certo dizer que há transmissão comunitária e que ela avança, mas precisar a presença da variante delta ainda é difícil”, diz Gomes. Em sua visão, a delta é só um fator de uma lista capitaneada pelo abandono dos protocolos sanitários e de distanciamento incentivado por gestores públicos. “Em vários Estados vimos interrupção da queda de casos já na segunda quinzena de junho e retomada do crescimento em julho. Então é precipitado colocar tudo na conta da delta”, diz ele que recomenda freio nas flexibilizações.

Em nota, o Ministério da Saúde informou que tem reforçado a orientação para Estados e municípios quanto ao sequenciamento genético, notificação imediata, rastreamento e isolamento dos casos e contatos, além de outras ações de prevenção.