A experiência brasileira de regulação em saúde é ainda muito jovem. Mas, passadas pouco mais de duas décadas, seus resultados têm se mostrado positivos, com maior proteção aos usuários e mais segurança jurídica para as operadoras. É hora de darmos passos adiante para conseguir incluir mais pessoas no sistema suplementar e, ao mesmo tempo, fazer frente a custos que aceleram aqui e em todo o mundo.

Em termos mais gerais, uma revisão abrangente e criteriosa da lei que rege os planos de saúde, a Lei 9.656/1998, deveria resultar em mais opções de coberturas e de produtos que atendam às múltiplas exigências, às diferentes necessidades e capacidades dos brasileiros. Esperamos que o Congresso, onde desde o ano passado uma comissão especial avalia mais de 250 projetos de lei sobre o assunto, consiga avançar nesta direção

O problema é que, lamentavelmente, ao invés de caminharmos rumo a um arcabouço regulatório mais sólido, temos observado iniciativas que vão em direção contrária, ameaçando desestruturar toda uma extensa cadeia de prestação de serviços que hoje funciona bem. Com isso, colocam em risco, sobretudo, o atendimento de qualidade prestado a 49 milhões de pessoas.

Importante sempre lembrar que a saúde suplementar movimenta uma rede de assistência que vai muito além de suas 700 operadoras. Envolve, também, mais 129 mil estabelecimentos de saúde que atendem planos privados no país, entre hospitais, consultórios médicos e laboratórios, e, ainda, em torno de 400 mil médicos que, de alguma forma, servem o setor privado.

Nem todos sabem, mas, embora movimentem cerca de R$ 220 bilhões ao ano, as operadoras ficam com parte bem pequena dessa receita. O que acontece é que as empresas repassam mais de 80% do que recebem na forma de mensalidades para pagar prestadores pelo atendimento aos beneficiários. Ou seja, a maior parte do dinheiro não fica com elas: em geral, a margem de lucro das operadoras gira em torno de 5%.

Isso significa que, caso prosperem, iniciativas, mudanças e decisões legislativas e judiciárias inadequadas podem impactar um ecossistema que movimenta 3% do PIB e emprega quase 4 milhões de pessoas. Mas não apenas. As consequências se farão sentir também no SUS (Sistema Único de Saúde). É cristalino: quanto mais pessoas podem dispor de um plano de saúde, menos são os que pressionam o sistema público e maior é o recurso per capita disponível para atendê-los.

Ressalto tudo isso porque, neste momento, um fundamento essencial ao equilíbrio e à sustentabilidade da saúde no Brasil está sob julgamento nos tribunais. Trata-se da questão da taxatividade do rol da ANS, o rol de cobertura obrigatória definido pela Agência Nacional de Saúde Suplementar, ou seja, a lista de tudo aquilo que é garantido aos usuários pelos planos (hoje são mais de 3.350 itens, quase o triplo do que era em 1998), que cobre todas as doenças estipuladas na classificação internacional e é pilar central da integridade da saúde suplementar.

A sociedade brasileira precisa compreender que um rol meramente exemplificativo, como defendem alguns, colide frontalmente com princípios basilares que regem as relações de consumo num setor regulado, cuja atividade baseia-se em seguro e em cálculo de risco, como são os planos de saúde. Colide, acima de tudo, com a preservação da segurança dos pacientes.

Uma eventual decisão pela não taxatividade do rol da ANS significaria a imprevisibilidade absoluta numa atividade que atua por meio de cumprimento de contratos, isto é, em que a prestação dos serviços depende fundamentalmente de previsibilidade. Colocaria, pois, todo o equilíbrio da cadeia de saúde em risco.

Com a sanção da Lei 14.307/2022, em março passado, que acelerou os processos de incorporação de novos medicamentos, procedimentos e eventos em saúde cobertos pelos planos, o Brasil passou a ter um dos sistemas de inclusão mais ágeis do mundo. Algo que aqui poderá ser feito em até quatro meses, na Inglaterra, paradigma mundial de sistema de saúde eficiente, gasta pelo menos 11. Mais: antes, as atualizações aconteciam a cada dois anos e agora o processo é contínuo, ininterrupto. As decisões são colegiadas, com ampla participação da sociedade, de forma democrática e justa.

Portanto, com estes recentíssimos avanços, não há mais que se falar em lentidão, em dificuldade de acesso ou em prejuízos para quem busca algum tratamento que ainda não está disponível. Perde ainda mais sentido alegar que o rol de cobertura deve ser apenas uma referência e não uma lista taxativa, bem definida e conhecida, que orienta a assistência, os cálculos de riscos e, portanto, a precificação correta dos produtos ofertados pelos planos.

Baseado em avaliação de tecnologias em saúde (ATS), o sistema de incorporação brasileiro está respaldado nas melhores práticas internacionais. Inclui análises de efetividade, segurança, superioridade terapêutica, avaliação econômica de benefícios e custos em comparação com as coberturas já fornecidas. Isso não pode ser desconsiderado, a bem do interesse coletivo – e por mais que interesses individuais às vezes possam soar legítimos.

Ilustro com um exemplo concreto. Já temos medicamento aprovado pela Anvisa e pronto para ser comercializado no país, o zolgensma, com custo de tratamento de R$ 6,5 milhões por paciente. Friso: por paciente! Tomando por base que, segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), a despesa média per capita em saúde no país foi de pouco menos de R$ 1.400 em 2019, isso daria para tratar mais de 4.600 pessoas. São decisões que precisam ficar claras para a sociedade, porque é ela quem paga esta conta.

Por razões assim, nenhum sistema de saúde bem organizado adota listas abertas de cobertura, como ocorreria com um rol da ANS meramente exemplificativo. Por uma questão prática: nenhum sistema de saúde bem organizado tem orçamento infinito. É preciso fazer escolhas. E as escolhas mais justas são baseadas em critérios objetivos, impessoais, equânimes. Em boa técnica e em ciência reconhecida.

Além disso, nenhum sistema de saúde bem organizado cobre tratamentos que não tenham sido submetidos a rigorosa análise prévia, em que se avaliam os resultados terapêuticos conjugados com os custos de tratamento, em comparação com opções já disponíveis e cobertas pelos planos ou pelo sistema público – a chamada análise de custo-efetividade.

Mais grave, sem parâmetros previamente conhecidos, o que resultaria de uma lista exemplificativa, o prêmio de risco naturalmente vai aumentar. Ou seja, as mensalidades vão subir, expulsando usuários. Os efeitos serão imediatos, afetando a vida de milhões de beneficiários. Mas também inviabilizando a sobrevivência de muitas operadoras hoje ativas: 90% delas são de pequeno ou médio porte, com 79% de seus clientes atendidos no interior do país.

Em todo o mundo, sistemas de saúde enfrentam a necessidade de ampliar acesso à assistência e, ao mesmo tempo, fazer frente a custos ascendentes. Também por esse motivo, ameaças ao equilíbrio e à sustentabilidade da saúde suplementar e sua extensa cadeia de serviços precisam ser evitadas, com base em regulação cada vez mais especializada e técnica, executada por órgãos específicos, como é o caso da ANS, e de forma sempre complementar aos legisladores, como dispõe a Constituição. Os bons efeitos se farão sentir por beneficiários, operadoras e, também, por toda a cadeia de prestadores de saúde.

Também para o Judiciário é muito importante um marco regulatório aperfeiçoado, mais robusto e aderente à realidade, que ajude a pacificar entendimentos e aplainar controvérsias. Com mais segurança jurídica, temos chance de reduzir o alto grau de judicialização que acaba servindo apenas a uma minoria que consegue acessar os tribunais, em prejuízo do conjunto maior da sociedade. Tenho confiança de que, com estas precauções, é possível avançar num rumo muito positivo, que resulte em mais acesso à saúde de qualidade, com ainda melhores resultados para os pacientes, tanto da saúde suplementar, quanto do SUS.