A inclusão do Zolgensma contra Atrofia Muscular Espinhal (AME) tipo 1 no rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) acendeu o debate sobre modelos de financiamento dos planos de saúde para tratamentos de alto custo. Na mesa, figura a possibilidade de modelos de compartilhamento de risco junto à indústria farmacêutica, assim como houve no Sistema Único de Saúde (SUS) para essa terapia gênica, uma das mais caras do mundo.

Porém, a medida — que passa por valores e formas de pagamento diferenciados de acordo com o grau de evolução ou de piora dos pacientes — está em mente em caso de novos tratamentos, segundo interlocutores. Isso porque, no caso do Zolgensma, os planos de saúde já são obrigados a custeá-los: a ANS precisa incluir na lista de cobertura obrigatória, em até 60 dias, os tratamentos aprovados pelo Ministério da Saúde após recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), conforme a lei 14.307, de março de 2022.

Em entrevista exclusiva ao JOTA, a diretora-executiva da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), Vera Valente, argumentou que a inclusão no rol tirou “poder de barganha” das empresas para negociar preços e pagamentos junto às farmacêuticas:

“Se a gente não discutir novos modelos, compartilhamento de risco, preços diferenciados, já que a saúde suplementar cuida de mais de 50 milhões de pessoas, o sistema não vai suportar. (…) É importante a sociedade entender que isso sai do bolso de todos nós”, afirmou a advogada e engenheira.

Cabe aos planos de saúde cobrir o Zolgensma para pacientes com AME tipo 1, de até 6 meses e fora da ventilação por mais de 16 horas por dia. Essa indicação atende aos requisitos do Ministério da Saúde, que restringiu a faixa etária — o aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) vai até 2 anos — sob a justificativa de que a eficácia da terapia gênica é maior até 6 meses.

Como mostrou o JOTA a seus assinantes, o Instituto Nacional da Atrofia Muscular Espinhal (Iname) aponta que 49% dos bebês com AME tipo 1 integram essa faixa etária. A dificuldade e a demora no diagnóstico representam entraves para o tratamento.

Nesse sentido, a FenaSaúde vê risco de que famílias façam pedido de cobertura para bebês de 6 meses a 2 anos. Há a avaliação de que tanto o aval da Conitec como o da ANS, bem como o registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), pavimentem o caminho para a judicialização. Advogados ouvidos pela reportagem corroboram essa possibilidade.

“O que o plano de saúde cumpre é o que foi definido pela ANS. Então, o que vai ser fornecido é cumprindo-se a regra. O nosso receio é a judicialização”, pontuou a diretora-executiva.

JOTA procurou seis dos maiores planos de saúde no Brasil — Amil, Bradesco Saúde, Golden Cross, HapVida, Unimed Nacional e SulAmérica — para questionar se beneficiários já haviam solicitado a terapia gênica após a incorporação no rol da ANS. As operadoras se limitaram a responder que seguiam o posicionamento divulgado pela FenaSaúde, em nota, e que não comentavam pedidos de cobertura.

Abaixo, leia os principais trechos da entrevista:

Como os planos de saúde veem a inclusão do Zolgensma no rol da ANS?

A questão da inclusão aconteceu em função da lei que determina que todas as incorporações pela Conitec são incorporadas na saúde suplementar. Mas o ponto chave disso é: a ANS incorporou em função do SUS e coloca exatamente o paciente que é elegível: crianças de até 6 meses e fora da ventilação por mais de 16 horas. O primeiro receio é que, no SUS, está definido e o SUS é que vai dar acesso a isso. Nosso receio na saúde suplementar é judicializar para crianças que não estão neste protocolo. Por que ele saiu desse jeito? Porque é onde você tem comprovação de eficácia da droga. É uma droga muito cara, que você não pode usar um paciente em quem você não tem comprovação de eficácia. É muito importante que seja respeitada essa definição, esse protocolo.

Agora, tem dois pontos que estão definidos para o SUS e não saíram para a saúde suplementar: o sistema público, a sociedade que paga impostos, vai desembolsar R$ 5,4 milhões por dose única. Na saúde suplementar, hoje, pelo preço definido pela CMED, se pagaria R$ 7,2 milhões. O que é importante a sociedade entender é que isso sai do bolso de todos. Seja pelo SUS, seja na saúde suplementar, esse é o dinheiro do cidadão. Então, por que a sociedade, via sistema público, vai pagar R$ 5,4 milhões, que já é muito dinheiro, e a gente vai pagar quase R$ 2 milhões a mais? A ANS, hoje, acaba não entrando nessa discussão do preço de incorporação, que eu considero uma agenda muito importante e urgente tendo em vista a gente ter drogas cada vez mais caras. Essa é uma questão que precisa ser discutida: a sociedade não pode pagar mais caro pelo fato de ela pagar plano de saúde, porque esse dinheiro sai do bolso do beneficiário do plano de saúde.

A droga é promissora dentro desse protocolo, mas ela ainda é muito nova, muito recente. Tem estudos ainda frágeis, que é como qualquer droga rara. Então, o que está se fazendo no mundo inteiro e o SUS também fez? É o que a gente chama de compartilhamento de risco. Esse é outro ponto muito chave. O que vem a ser isso? Você não paga o valor total da droga do zero. O SUS combinou com a indústria farmacêutica que ele pagaria isso fracionado, dividido em parcelas: o acordo paga 20% do valor a cada 12 meses condicionado à morte, ventilação mecânica permanente e ganho ou manutenção da escala motora. Então, você pagou, na saúde suplementar, R$ 7,2 milhões de reais, mas, infelizmente — o que a gente quer é que as crianças tenham esse benefício —, a criança vem a falecer, o SUS paga 20% disso e a saúde suplementar, 100%. Esse compartilhamento de risco para essa droga existe no mundo inteiro e é fundamental que a gente tenha também um monitoramento dos pacientes, porque, insisto, esse valor não está saindo do dinheiro da operadora, mas do pagamento que os beneficiários fazem para operadora. Quem paga o plano de saúde vai pagar uma parcela dessas novas drogas caríssimas, então é nossa responsabilidade que a gente pague o que é justo. Então, se são R$ 5,4 milhões, são R$ 5,4 milhões e não R$ 7,2 milhões, e que a gente também olhe o desfecho do paciente. Se a droga promete tirar a dependência de ventilação mecânica e que a criança vai viver bem, que isso seja comprovado. A gente precisa discutir o preço desse medicamento, que não pode ser mais caro que no SUS.

O Zolgensma é um dos medicamentos mais caros do mundo. Como os planos de saúde pretendem custeá-lo?

Qualquer coisa que o plano de saúde é obrigado a pagar sai da contribuição de todos os beneficiários. Por isso, a gente tem que ter muita responsabilidade de usar realmente para aquele paciente que vai se beneficiar e usar de uma forma que garanta a qualidade prometida pela indústria do medicamento, que garanta que aqueles desfechos. Então, os planos vão custear, a gente cumpre a lei. Precisamos discutir o preço dessa droga. A gente precisa ter o mesmo preço e discutir a questão da garantia dos desfechos (resultados).

Existe um acordo de compartilhamento de risco sendo gestado com a fabricante Novartis?

Não. Na Conitec, o documento de incorporação já coloca (o acordo de compartilhamento de risco) como condicionante. A droga foi incorporada no mesmo protocolo do SUS, de idade e condições do paciente, entretanto, a ANS não fala de compartilhamento de risco nem do preço. Precisamos discutir isso.

Então, qual seria o modelo de pagamento?

Do jeito que saiu, o plano de saúde é obrigado a pagar para a criança naquelas condições e ponto. O que a gente está dizendo que seria bom, nessa droga, a gente tentar sentar para discutir modelos de compartilhamento e preço, só que o nosso poder com relação a isso fica reduzido, já que já saiu a regra do plano de saúde. O que eu estou dizendo é que, se não conseguimos avançar muito para esse produto, precisamos avançar, porque esse é um de muitos. Nós precisamos, como sociedade, discutir compartilhamento de risco e preços das drogas no sistema privado, porque a sociedade não vai conseguir continuar pagando. Estão vindo drogas cada vez mais caras, essa é uma de muitas que estão vindo.

A sociedade, a maioria das pessoas vai financiar uma droga para poucas pessoas. Isso começa a ter uma limitação, porque a pessoa começa a não conseguir pagar o plano ou sistema público não consegue ter o orçamento para bancar isso e você vai se estruturando o sistema como um todo.

Existe a possibilidade de criar um fundo para doenças raras, por exemplo?

Não tem nada disso. São discussões que precisam evoluir daqui para a frente porque a gente tem drogas cada vez mais caras.

O custeio ao Zolgensma pode elevar o preço dos planos de saúde mesmo que o número de bebês aptos seja pequeno?

O número é pequeno, mas o valor da droga é muito alto. Qualquer gasto do plano de saúde é avaliado quando a gente fala do custo assistencial, que vai desde medicamentos, a cirurgias, internações, exames. É um valor muito alto, então vai estar no cálculo do reajuste. Quanto isso vai impactar? A gente não tem como fazer essa conta.

Se você tem o mesmo valor de uma determinada coisa, mas o uso daquilo triplica, isso impacta o custo essencial. Se você tem uma coisa que tem baixo uso, mas um valor muito alto, também impacta.

Os planos de saúde custearão o medicamento em bebês de 6 meses a 2 anos?

O que o plano de saúde cumpre é o que foi definido pela ANS. Então, o que vai ser fornecido é cumprindo-se a regra. O nosso receio é a judicialização. Por que o SUS definiu essa faixa de paciente? Porque é onde você tem real comprovação de eficácia. Então, não se pode usar o recurso nesse nível de valor sem você ter eficácia comprovada.

Existe possibilidade de os planos de saúde judicializarem a cobertura?

Aí é com cada operadora. Nós, como federação, não orientamos isso.

Preço na rede pública x privada

A disparidade de preços entre o custo do Zolgensma para o SUS para os planos de saúde levantou o debate sobre a ANS atuar na regulação de preços no setor suplementar. Isso porque o Ministério da Saúde conseguiu baixar o preço de 7,2 milhões, teto definido pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), para até R$ 5,4 milhões com o acordo de compartilhamento de risco.

Medidas como essa passam por valores e formas de pagamento diferenciados de acordo com o grau de evolução ou de piora dos pacientes. Não houve, porém, acordo semelhante no sistema privado. Na visão da FenaSaúde, a ANS deveria entrar em campo para a negociação.

Para associações de pacientes, o preço do Zolgensma praticado no SUS deveria se estender aos planos de saúde. A medida equipararia as condições para o fornecimento da terapia gênica no Brasil.

“Com relação ao Zolgensma, acredito que o valor, assim como as condições deveriam ser as mesmas tanto para o governo quanto para as empresas privadas na área de saúde.  Não podemos deixar de considerar que as empresas privadas de saúde fazem o papel do SUS, para aqueles cidadãos que têm condições de arcar com o valor de um plano de saúde, acabando por aliviar o sistema”, afirmou ao JOTA a presidente da Associação dos Familiares, Amigos e Portadores de Doenças Graves (Afag), Cecília Oliveira.

A medida é vista como possível, mas há poréns. No escopo da CMED, por exemplo, a lei estabelece o chamado desconto CAP para vendas ao governo.

“Nossa legislação não prevê aplicar o desconto CAP para operadoras de saúde, quem regulamenta a atuação das operadoras é a ANS. Nesse caso específico do Zolgensma, é possível e razoável que se implemente, nessa inclusão, uma negociação”, explica a diretora da Associação de Fibrose Cística do Espírito Santo (Afices), Letícia Lemgruber.