Três motivos nos levam a escrever novamente sobre Inteligência Artificial (IA): (1º.) em um único dia (15/04), Fundos Globais investiram mais de US$ 1,5 bilhão em 10 startups de GenAI (nada parecido havia ocorrido antes); (2º.) uma pesquisa publicada este ano, realizada com desenvolvedores de IAs, prognosticou o futuro com os LLMs (mais detalhes abaixo); e (3º.) em maio/2024, na Feira HOSPITALAR, acontecerá o maior evento da América Latina de GenAI na Saúde (“Future Digital Health: GenAI Brasil 2024”), com 4 dias de congresso, mais de 60 speakers nacionais e internacionais, representando 10 países.

Assim sendo, GenAI continua a “musa digital” de 2024, inspirando os ambientes críticos e estimulando os criativos. Ilustres, influenciadores e especialistas conjunturais sempre bradarão profecias candentes sobre os perigos da Inteligência Artificial (IA). Todas são válidas e devemos considerá-las na estrita importância científica do preditor. As plataformas generativas, por outro lado, só avançam e quase nem se perturbam com prenúncios negativistas. Para cada profecia contrária, existe uma contrapartida progressista.

“IA trará muitos benefícios ao mundo. Mas as pessoas estão explorando o medo em relação a ela e corremos o risco de afugentá-las. Esse é um erro cometido com outras tecnologias que revolucionaram o mundo, como a invenção da imprensa no século XV. A Igreja Católica odiava. As pessoas poderiam ler a Bíblia sozinhas e não precisavam mais falar com o padre. Praticamente todo o establishment era contra o uso generalizado da imprensa: isso mudava a estrutura de poder. Eles estavam certos: isso criou 200 anos de conflito religioso, mas também trouxe o Iluminismo”, explicou Yann LeCun, principal cientista de IA da Meta e professor na New York University, em entrevista da Wired. “Na verdade, IA mitiga perigos, como o discurso de ódio, a desinformação e as tentativas propagandistas de corromper o sistema eleitoral. Na Meta, por exemplo, tivemos um enorme progresso no uso da IA para coisas assim. Há cinco anos, de todo o discurso de ódio que o Facebook removeu da plataforma, cerca de 20 a 25% foram eliminados preventivamente por sistemas de IA antes que alguém os visse. No ano passado, foi de 95%”, completa LeCun.

  • Em 2024, a Inteligência Artificial (IA) será utilizada em pelo menos um procedimento médico rotineiro, sendo usada também para auxiliar no diagnóstico.
  • Em 2025, ela será utilizada em inúmeros procedimentos clínicos rotineiros, ajudando também a personalizar planos de tratamento aos pacientes.
  • Em 2030, sua aplicação estará presente na maioria dos procedimentos médicos rotineiros, também sendo utilizada em larga escala para diagnósticos com alto grau de precisão.
  • Em 2035, as IAs serão empregadas com grande frequência para prevenir doenças antes que estas se desenvolvam, bem como apoiar a cura de “doenças com prognóstico desfavorável”, ou “doenças de difícil manejo”, ou mesmo “doenças com baixa taxa de sobrevida” (a bem da verdade, o estudo usa a palavra “doenças incuráveis”, que aqui desconsidero por motivos óbvios: a “incurabilidade é sempre circunstancial”: o que é curável hoje, pode não ser amanhã por motivos que hoje sequer existem).
  • A partir de 2040, as plataformas inteligentes terão um impacto transformador na saúde, revolucionando a forma como prevenimos, diagnosticamos e tratamos doenças. Sua utilização na pesquisa terá o potencial de resolver alguns dos mais desafiadores problemas da saúde global, como câncer, doenças cardíacas e doenças neurodegenerativas.
  • Até 2028, sistemas de IA poderão (autonomamente) construir plataformas de processamento de pagamentos e criar músicas indistinguíveis das compostas por artistas populares.
  • Superação Humana: até 2047, a probabilidade é de que 50% das tarefas humanas sejam superadas e realizadas por máquinas inteligentes, adiantando a previsão anterior em 13 anos (ou seja, a projeção anterior indicava que essa superação só ocorreria em 2060).
  • A projeção mostra que os resultados positivos superam os negativos: 68,3% dos pesquisadores acreditam que os resultados positivos serão mais prováveis, com 48% dos otimistas reconhecendo uma pequena chance de consequências extremamente negativas, incluindo a extinção humana.
  • A maioria significativa dos pesquisadores também acredita que sistemas de IA provavelmente alcançarão capacidades muito-notáveis ​​nas próximas duas décadas. Isso inclui: (1) encontrar “maneiras inesperadas de atingir metas” (82,3%); (2) “falar como um especialista humano sobre a maioria dos tópicos” (81,4%); e (3) “comportar-se frequentemente de maneira surpreendente para os humanos” (69,1%)​​.
  • O estudo também prevê que 10% das ocupações suscetíveis à automação serão automatizadas até 2037, alcançando 50% até 2116 (quando metade de todas as tarefas humanas automatizáveis serão realizadas por máquinas).

O estudo reconhece que o futuro da IA também pode ser incerto e que as previsões baseadas em pesquisas atuais podem não se concretizar. Essa transparência é importante para evitar expectativas irreais, promovendo um debate construtivo sobre o futuro das GenAIs. Todavia, o que mais sinaliza para a evolução dos LLMs é a quantidade de pesquisas e estudos depois de seu aparecimento. A pesquisa “Mapping the Increasing Use of LLMs in Scientific Papers”, realizada por pesquisadores da Stanford University e publicada em abril/2024, mostra o exponencial crescimento da pesquisa científica depois do despertar dos LLMs (novembro/2022). O gráfico abaixo mostra a expansão identificada pela pesquisa, estudando trabalhos de 2020 (antes da pandemia) até fevereiro de 2024 (a análise alcançou 950.965 papers). Todas as principais linhas de estudos randomizados obtiveram uma explosão quantitativa depois das GenAIs.

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A conclusão do estudo já é, em si um eixo de previsibilidade sobre o futuro: “De acordo com comparações feitas com médicos especializados, os LLMs de última geração estão se aproximando do desempenho de especialistas em questões de oftalmologia avançada, por exemplo. O GPT-4 alcança um desempenho digno de aprovação nas questões da FRCOphth (parte 2) e excede as pontuações de oftalmologistas especialistas”.

Outro trabalho (“LLMs could change the future of behavioral healthcare”), publicado pela Nature Mental Health também em abril/2024, revela como as GenAIs devem redesenhar a terapia humana: “Os LLMs, como o GPT-4 da Open AI e o Gemini, do Google, construídos com base em IA, possuem um imenso potencial para apoiar, aumentar ou até mesmo automatizar a psicoterapia. Embora a psicologia clínica seja um domínio de aplicação com alto risco, incomum para sistemas de IA, esses desenvolvimentos prometem resolver a capacidade insuficiente do ‘sistema de saúde mental’ e ampliar o acesso individual a tratamentos personalizados”, explicou o estudo. A conclusão é menos uma prosa entusiasmada sobre as IAs e mais um convite aos profissionais de saúde lerem o estudo e considerar o impacto dele no campo das patologias comportamentais e mentais: “Embora seja justificado um otimismo cauteloso sobre as aplicações clínicas dos LLMs, também é crucial que psicólogos abordem a integração deles com a psicoterapia, educando o público sobre os riscos e limitações dessas tecnologias para fins terapêuticos”.

A pergunta mais pertinente e complexa é: o que significam esses dados preditivos? O que eles representam para cada um de nós quando levantarmos amanhã da cama e milhares de ações, tarefas, ocupações e decisões diárias se impuserem? Como um médico, ou qualquer outro profissional, deve entender essa acelerada e milagrosa “multiplicação de pães” no seio de seu trabalho? Em que uma GenAI muda a nossa vida?

Para Bourdieu, o mais importante sociólogo francês do final do século passado, o habitus do indivíduo influencia a sua trajetória no trabalho. Relações de poder tendem a ser dominantes por parte dos grupos mais privilegiados. O sociólogo reconhece que nossa capacidade para obter melhores condições de vida depende, eminentemente, da forma como nos organizamos, ou como mantemos nossos níveis de competência, principalmente quando enfrentamos desafios impostos pela dominância tecnológica. Assim como Marx, Bourdieu também cunhou um gabarito social para ‘sobreviver ao ambiente de trabalho’: o habitus do indivíduo influencia as suas oportunidades, experiências e valoração laboral. Se o sociólogo estivesse vivo, certamente diria: “IA é poder”. Ajuste-se a ela como nos ajustamos a Internet, à mobilidade urbana e a educação informal. Persiga as correntes operacionais que reduzam a sua fraqueza, enfrentando as trilhas excludentes ou polarizadoras dos LLMs. Mas lute do lado de dentro, e não do lado de fora (escrevendo manifestos).

O que já está claro é que uma inteligência artificial é um salto para dentro da nossa própria inteligência. Trata-se de uma auditoria, uma DR, um incrível encontro com nossa fragilidade e baixa competência. Todos nós tememos esse encontro, porque somos seres arrogantes, ensimesmados e acuados pelo tempo. IA nos empurra de paraquedas para o centro dessa insignificância. Lá, percebemos como somos frágeis, toscos e incompetentes. Esse parecia ser o nosso segredo oculto, sobre o qual pouco conversávamos. O medo de que “máquinas nos superem” também é uma tosquice. É uma forma de defesa e de proteção.

Mas temos, por enquanto, particularidades que as IAs não têm. Inteligência é um termo abrangente, referindo-se à capacidade de aprender, entender, raciocinar, tomar decisões e resolver problemas (novos). Já Esperteza é a nossa habilidade de ‘usar a inteligência’ para manipular situações, pessoas e máquinas de modo a alcançar objetivos específicos. Esperteza é como uma “inteligência prática”, focada e estimulada a uma determinada meta ou propósito. Assim, somos espertos quando nos apropriamos de uma quantidade de inteligência (por menor que seja) e a usamos para atingir alvos.

GenAIs poderão ser mais inteligentes que humanos, mas dificilmente serão mais espertas. A diferença entre inteligência e astúcia (esperteza, sagacidade) vai muito além do funcionamento neural. A inteligência é frequentemente avaliada por nossa capacidade cognitiva, como memória, raciocínio lógico e compreensão verbal, características amplamente influenciadas pela função cerebral (córtex pré-frontal, hipocampo, etc.). Por outro lado, a astúcia, como descreveu Bourdieu, envolve não apenas a cognição, mas também a “habilidade de aplicar nossas capacidades em contextos sociais e práticos”, sendo, assim, sempre reforçada pela socialização (contato social humano-humano). A esperteza não é apenas um atributo nativo (genômico), mas é também aquela propriedade que todos os dias aprendemos em nosso cotidiano. Portanto, deixe as GenAIs fazer parte de habitus.

Quanto a esperteza e astúcia, relaxe, os LLMs estão muito longe disso. Seu senso de humor, por exemplo, é simplesmente patético. Um arguto pesquisador perguntou a um GPT qualquer: “Uma rata ri?”, ou seja, uma rata (mamífero roedor fêmea) é capaz de dar uma risada sonora, descompromissada e estimulante? A máquina cuspiu três laudas de explicações biológicas e especulativas, sem chegar a nenhuma conclusão. O pesquisador, então, desafiou: “se me perguntar a mesma coisa, a resposta virá em três palavras”. Estimulado, o GPT devolveu: “…responda: uma rata é capaz de rir?” Com a calma de um mestre budista, o pesquisador escreveu no prompt: “depende da piada”.