Um dos empresários mais antigos no mercado de saúde privada no Brasil, José Seripieri Filho, o fundador da Qualicorp conhecido como Junior, atribui à regulação a crise atual enfrentada pelos planos de saúde, que fecharam 2022 com prejuízo operacional de R$ 11,5 bilhões, o pior em 20 anos, segundo a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar).

Para ele, o projeto de lei sobre o setor que tramita na Câmara dos Deputados deve piorar o desequilíbrio, prejudicando as operadoras, que podem não suportar. O empresário sugere um reforço no regramento para hospitais, médicos e farmacêuticas que atuam no mercado.

“A saúde suplementar não é mais um problema da ANS com as operadoras. Já é um problema de governo, de longo prazo, de sustentabilidade do setor em uma ponta e de acessibilidade na outra ponta.”

Seripieri saiu da Qualicorp em 2019, abriu a QSaúde em 2020 para vender planos individuais e acaba de deixar o setor novamente. Vendeu a carteira de beneficiários da QSaúde para a healthtech Alice neste ano, mas já não manifesta o mesmo desejo de voltar para o ramo.

“A depender da oportunidade, pode até ser, mas hoje me dá mais medo do que vontade de empreender nessa área”, afirma. Ele vê distorções nos reajustes e falta de interesse por parte das grandes operadoras no mercado de planos individuais.

“ Dos mais de 50 milhões de clientes que têm saúde privada, só 18% são do plano individual. É um produto pequeno, de baixa aderência. É uma carteira que vem envelhecendo ao longo dos anos.

A ANS dá um reajuste que, ano a ano, segundo as operadoras, é hipossuficiente

A ANS tem mil normas sobre as operadoras e nenhuma sobre os prestadores de serviços médicos”

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O novo reajuste anual dos planos individuais, divulgado pela ANS na última segunda-feira (12), ficou em 9,63%. O que achou da alta?

Há um cálculo técnico, mas as premissas e a resultante não correspondem à realidade. É inexplicável que uma massa de 9 milhões de clientes dos planos individuais, mais idosa e que tem uma utilização mais acentuada, receba um reajuste menor do que os 43 milhões [de usuários dos planos coletivos], que têm um reajuste de 20% a 30%. Não posso questionar a tecnicidade da ANS, mas olhando de fora: ou o individual está subtarifado ou o coletivo está hipertarifado.

Dos mais de 50 milhões de clientes que têm saúde privada, só 18% são do plano individual É um produto pequeno, de baixa aderência. É uma carteira que vem envelhecendo ao longo dos anos. A ANS dá um reajuste que, ano a ano, segundo as operadoras, é hipossuficiente. Em 22 anos, que é a idade da ANS, a carteira vai ficando cada vez mais defasa da do ponto de vista atuarial E com a baixa comercialização, não tem uma oxigenação dessa carteira do individual Tem mais uma variante: a partir do Estatuto do Idoso, em 2004, é proibido o reajuste por faixa etária acima de 59 anos.

As empresas não têm interesse de vender o individual? Esse é um mercado destinado a acabar?

As empresas menores ainda comercializam o individual, mas é muito pouco em volume de pessoas. As grandes corporações não têm interesse, não comercializam. Hoje há uma concentração cada vez maior em grandes grupos econômicos da área de saúde.

Foi por isso que o Sr. vendeu a carteira da QSaúde?Foi por causa dessa conta que não fecha? Deveria ter muito mais investimento, que eu não queria fazer.

Qual é o problema desse mercado? Por que o consumidor sente que o preço está sempre alto por um serviço inadequado e, por outro lado, o setor enfrenta dificuldade financeira?

Paradoxalmente, quanto mais alto é o barramento da regulação pró-consumidor, quanto maiores são as obrigações de uma operadora, mais difícil fica para os novos entrantes no mercado, porque fica caro. Ela tem limite para rebater isso no preço. Tem um efeito colateral nefasto para a sociedade.

Uma empresa tem que ter previsibilidade, por isso existem os cálculos atuariais. No aspecto regulatório, o mercado hoje já é exageradamente regulado.

Na outra ponta, tem a rede médica de prestadores, que não sofre nenhuma espécie de regulação, mas ela impacta em 80% a 90% das despesas de uma operadora, ou seja, a cada R$ 100 que uma operadora arrecada, ela gasta entre R$ 80 e R$ 90 com prestador médico. Desde um consultório até uma internação de alta complexidade. O que sobra para ela não paga a reserva técnica que ela tem que constituir na ANS, despesas administrativas, operacionais e comerciais.

Há um desbalanceamento regulatório. Não adianta regular só a operadora. Ou você regula todos os entes dessa cadeia econômica, incluindo prestadores médicos e indústria farmacêutica, ou você vai sobrecarregar um único ente de toda essa cadeia, que não aguenta.

A ANS tem mil normas sobre as operadoras e nenhuma sobre os prestadores. E hoje, está em alta o projeto de lei 7.419/06, para refazer a legislação sobrecarregando as operadoras. Quem mais vai sofrer é o consumidor, e cada vez mais vai haver uma concentração mercadológica. Poucos gigantes dominarão o mercado.

O restante da cadeia já não tem regulação?

Não. Eles têm controle sanitarista por parte da Anvisa, além de alvará de prefeitura e bombeiro. Porém, na saúde suplementar, a cadeia toda não é regulada. Não é sequer monitorada. Se, por exemplo, um hospital aumentar 30% ou 40% uma tabela de uma operadora, ela não consegue repassar esse reajuste no plano individual. Repassa no coletivo. Se um hospital for pego fraudando uma operadora ou produzir um reajuste abusivo, a operadora não pode descredenciá-lo.

E os médicos que dão dois recibos para uma única consulta? As operadoras não podem questioná-los? Exatamente. As consultas são um exemplo. Tem casos de cobranças de procedimentos que sequer existiram, e não tem como a operadora auferir in loco se aconteceu ou não.

No caso hospitalar, mesmo que haja uma fraude ou um aumento absolutamente abusivo, a operadora só pode descredenciar mediante prévia autorização da ANS, o que na prática não acontece. Isso potencializa a impunidade e uma cadeia de fraude. E ainda tem um excesso de judicialização, em que basta uma declaração médica de uma página para o juiz dar uma liminar e ser feito um procedimento. Uma vez realizado, o hospital cobra da operadora, mesmo que esteja fora do contrato e mesmo que não [esteja] previsto pela ANS.

Voltamos à questão da regulamentação. Ou se flexibiliza a regulamentação, para que mais pessoas tenham acesso, ou a cadeia inteira tem que ser regulamentada, para que esse barramento regulatório fique justo e equilibrado.

A saúde suplementar não é mais um problema da ANS com as operadoras. Já é um problema de governo, de longo prazo, de sustentabilidade do setor em uma ponta e de acessibilidade na outra ponta.

Essa defesa da mudança regulatória, que é um pleito antigo do setor, tem entre as sugestões a liberação das reservas técnicas obrigatórias das operadoras. Isso poderia resolver a crise atual, mas não faria falta no longo prazo?

Esse fundo tira dinheiro do sistema e da operadora para nada, porque não é asado. São R$ 100 bilhões parados em banco sem nenhuma finalidade porque, na prática, ele não atende o sistema, já que inúmeras operadoras quebraram sem que a ANS tenha usado esse dinheiro. E o SUS tem uma deficiência gigantesca de verba. Ou eles diminuem e liberam essa reserva para o sistema privado, o que vai se reverter em uma baixa de preço, ou distribui esse dinheiro para o SUS.

Na escassez do plano individual, tem outro arranjo do chamado falso coletivo?

Muita gente abriu CNPJ na Receita Federal apenas para celebrar um plano coletivo de microempresa que, na prática, é um individual mascarado de coletivo. É só uma pessoa, mas a operadora entende como sendo pessoas jurídicas. Desse modo, o reajuste é feito pelo pool dos contratos de PME até 30 vidas, que podem subir de 20% a 30%. Em alguns casos, é feita a seleção de risco, ou seja, quem está doente não entra, coisa que no individual e no adesão é terminantemente proibido.

Na prática, embora existam PMEs legítimas, o joio se mistura com o trigo. A operadora tem obrigação de controlar se esse CNPJ está ativo ou não. Mas a gente sabe que um grande percentual desses CNPJs só existiram para a celebração do plano de saúde coletivo. É um jeito de burlar o sistema, porque deveria ser um contrato com o CPF.

Até 1998, antes da nova lei, o plano individual era o que mais vendia no Brasil. Por isso eu digo que a regulamentação e o modus operandi do mercado, cada vez mais, são um inibidor de acessibilidade. Quando vem um reajuste impagável, o cliente faz um downgrade de plano. Primeiro, na própria operadora, depois, ele vai para uma medicina de grupo verticalizada.

O sr. é um dos empresários mais antigos no setor, fundou a Qualicorp nos anos 1990, saiu em 2019 e depois abriu a QSaúde. Neste ano, vendeu a carteira da QSaúde. Pensa em voltar para o setor de alguma forma? Não seria via plano individual?

Eu só não posso competir com a Qualicorp porque eu tenho um non-compete assinado com ela [cláusula que o impede de atuar na concorrência]. Eu não poderia voltar como administradora de benefícios durante um período. Como operadora, eu diria que, teoricamente, hoje não. Mas às vezes surgem oportunidades. E a depender da oportunidade, pode até ser. Mas hoje me dá mais medo do que vontade de empreender nessa área.