Um dos grandes desafios do sistema de saúde brasileiro para os próximos anos será o de regular adequadamente a coleta, o armazenamento, o tratamento, o uso, o comércio e a disponibilização dos dados digitais armazenados nas diversas plataformas e aplicativos digitais de saúde que estão em funcionamento e são amplamente difundidos no mercado. Os dados relacionados à saúde de uma pessoa são, via de regra, considerados como “dados sensíveis”, na medida em que reúnem informações que, tradicionalmente, encontram-se no campo dos direitos de personalidade.

Dados típicos da personalidade da pessoa, tais como nome, endereço, idade, sexo, estado civil, gênero e cor, entre outros, são associados, nas plataformas e aplicativos digitais de saúde, a dados sensíveis e ultrassensíveis relacionados ao estado de saúde da pessoa, tais como hábitos alimentares, hábitos de exercício físico, condições de saúde, cirurgias já realizadas, medicamentos já usados e em utilização, exames diagnósticos laboratoriais, tratamentos realizados, doenças antigas e atuais etc. A depender do tipo de informação de saúde da pessoa, podemos dizer que são dados ultrassensíveis, que exigem grande proteção estatal, em nível igual ou ainda superior à proteção atualmente dada para os dados fiscais e bancários de um cidadão.

Nos tempos atuais, em que praticamente todas as ações cotidianas estão mediadas por plataformas e aplicativos digitais, a quantidade de dados e informações pessoais de cada um de nós que está na posse de terceiros é enorme, gerando uma nova forma de vulnerabilidade que podemos classificar como vulnerabilidade digital.

A vulnerabilidade digital tem como causa não só a dimensão dos dados pessoais expostos a terceiros nas plataformas e aplicativos digitais, mas também a fragilidade dos cidadãos nestes tempos de revolução digital no que se refere ao recebimento diuturno de serviços digitais de saúde que podem, no final das contas, mais prejudicar do que beneficiar a saúde das pessoas. São os sites e aplicativos que vendem bem-estar, que vendem serviços diagnósticos e terapêuticos de saúde, que vendem produtos de saúde e medicamentos, enfim, que vendem a promessa de uma saúde melhor, mas que ainda não encontram um ambiente regulatório adequado para conformar suas práticas à necessária proteção dos usuários desses serviços digitais.

Finalmente, a vulnerabilidade digital em saúde está cada vez mais associada à fragilidade dos cidadãos em geral com relação ao recebimento direto, em seus dispositivos móveis digitais, de fake news (notícias falsas, mentirosas) relacionadas à saúde. Ultimamente, as fake news em saúde vêm provocando impactos individuais e coletivos visíveis no que se refere à vacinação obrigatória no país, mas não só. No Brasil, os efeitos das fake news em saúde ao longo da pandemia foram devastadores (da cloroquina à vacina), assim como é muito comum atualmente a circulação de notícias falsas (positivas ou negativas) sobre um determinado produto, um determinado local ou um determinado serviço de saúde, gerando danos e riscos à saúde individual e coletiva de difícil dimensionamento.

No campo da saúde, é bastante comum que políticas públicas de saúde organizadas pelo Estado cuidem de forma diferenciada dos grupos sociais em condição de vulnerabilidade. O conceito de vulnerabilidade vem sendo estudado e trabalhado por diversos autores, em uma constante busca por sínteses conceituais e diretrizes práticas para a transformação das dimensões comportamentais, sociais e político-institucionais.

A vulnerabilidade digital é uma nova forma de vulnerabilidade, e deve ser trabalhada para que se entenda as diferentes suscetibilidades de indivíduos e grupos populacionais aos meios digitais, suscetibilidades agravadas pelos altos riscos de que os meios digitais sejam fontes de doenças e agravos à saúde com conseqüências indesejáveis, tais como sofrimento, limitação e morte. Assim, às tradicionais vulnerabilidades que o setor de saúde já é obrigado a cuidar tradicionalmente somam-se as vulnerabilidades digitais, resultante das novas interações digitais a que estamos sujeitos em nosso dia a dia e, principalmente, dos produtos e serviços de saúde que se utilizam de meios digitais para serem vendidos, disponibilizados e publicizados.

Quando se trata de pessoas em condição de vulnerabilidade na área da saúde, tradicionalmente dois grupos são identificados: a vulnerabilidade por condições de saúde, que afeta aqueles que por alguma condição biológica ou do ciclo de vida necessitam de um cuidado mais específico e; as vulnerabilidades sócio-econômicos-culturais, oriundas da condição de vida de um determinado grupo e/ou indivíduo, condição esta torna este grupo/indivíduo mais fragilizado socialmente e dependente de tratamento diferenciado a ser dado pelo Estado e pelo sistema público de saúde.

No campo da saúde digital, estas vulnerabilidades são ainda mais potencializadas e conferem fragilidade aos usuários de sites e aplicativos de saúde, gerando especial impacto à saúde dos cidadãos que vivem em contextos sócio-etário-econômico-cultural mais precários e complexos. Esse caldo de vulnerabilidades clássicas associado à vulnerabilidade digital agrava ainda mais os desafios brasileiros no que se refere à promoção da equidade no campo da saúde.

Hoje no Brasil muito se discute sobre as iniquidade de saúde que atingem principalmente os grupos/indivíduos em condição de vulnerabilidade sócio-etária-econômica-cultural. A análise de alguns indicadores demográficos sociais do país nos permite perceber claramente estas iniquidades e antever os perigos que esses grupos estão correndo nessa nova era da saúde digital.

As iniquidades no Brasil atingem a população de diversas formas. Considerando-se o nível de alfabetização como condição de vulnerabilidade, vê-se que ele se concentra na zona rural, com maiores proporções dentre a população indígena, parda e preta. Enquanto 5,62% da população branca que vive em centros urbanos é analfabeta, o mesmo problema atinge 10,32% da população preta e 8,35% da população parda que vivem em centros urbanos (IBGE, 2010).

O mesmo fenômeno de vulnerabilidade social de parcela específica de nossa população pode ser verificado em outros indicadores, como renda e moradia. De acordo com o IBGE (Censo 2010), os rendimentos mensais dos brancos (R$ 1.538) e amarelos (R$ 1.574) se aproximaram do dobro do valor relativo aos grupos de pretos (R$ 834), pardos (R$ 845) ou indígenas (R$ 735). No que se refere à moradia, estudo feito pela Fundação João Pinheiro aponta que 82,5% das famílias que vivem em moradias precárias, inadequadas ou estão sem moradia possuem renda inferior a 3 salários mínimos; 10,1% possuem renda entre 3 e 5 salários mínimos;  5,6% possuem renda entre 5 e 10 salários mínimos e 1,8% possuem renda superior a 10 salários mínimos (Fundação João Pinheiro, 2014).

Esses grupos tradicionalmente em condições vulneráveis certamente são também os mais vulneráveis no campo da saúde digital, expostos a serviços digitais picaretas ou ainda às fake news com potencial de dano enorme à saúde individual e coletiva. Mas importa lembrar que, no que se refere à vulnerabilidade digital, mesmo os grupos sociais mais favorecidos encontram-se ou podem encontrar-se em situação de vulnerabilidade, já que serviços picaretas e fake news têm potencial de atingir a todos indistintamente.

Após as eleições norte-americanas que elegeram Donald Trump, ficou evidente, ainda, o uso que os grandes conglomerados digitais do mundo podem fazer destes dados, e de que forma isso pode impactar comportamentos e escolhas individuais.

A forma como a Cambridge Analytica usou e tratou os dados de milhões de usuários do Facebook para induzir de forma perniciosa o comportamento político dos cidadãos norte-americanos é uma pequena mostra do impacto que este tipo de tecnologia pode ter sobre a saúde individual e coletiva ao redor do mundo. O lado mais visível do perigo, que é a indução das pessoas em vulnerabilidade digital para o consumo de produtos e serviços de saúde, é apenas um exemplo do potencial de dano iminente que nos espreita. Os dados sensíveis de saúde podem ser usados para diversos fins eticamente delicados e duvidosos, tais como: determinar quem vai ter um emprego ou não com base nas condições de saúde; definir qual o preço que uma pessoa pagará em seu plano de saúde; definir que tipo de condições de saúde serão admitidas nas políticas de imigração entre países; induzir uma pessoa a determinados comportamentos etc.

Tudo isso já está acontecendo, e não podemos simplesmente ficar na praça dando milho aos pombos. Urge que a sociedade brasileira (e global) se organize para conter os infinitos riscos que a saúde digital nos impõe e nos irá impor em futuro não tão distante.