A Associação Brasileira dos Centros de Diálise e Transplante (ABCDT) desenvolveu um estudo inédito – Observatório Nacional dos Dados de Diálise – para avaliar como está o acesso aos serviços de terapia renal substitutiva nas diversas regiões do país, nos últimos onze anos. Encontrou diferenças que apontam para a necessidade de políticas públicas mais específicas e direcionadas para solucionar gargalos.

Um dos dados que chama a atenção é a diferença do crescimento de pacientes e procedimentos realizados no âmbito do SUS e na rede privada. Há onze anos, o SUS atendia a cerca de 78 mil pacientes – que realizavam 12 milhões de procedimentos anuais e a rede privada tinha 7,3 mil pacientes, com 1,3 milhão de sessões de diálise por ano. De lá pra cá, houve crescimento de 3 3% no SUS, chegando a 17.5 milhões de procedimentos para quase 104 mil pacientes. Já na rede privada o incremento foi de 108%, passando para cerca de 2 milhões de procedimentos em quase 15 mil pacientes até o ano de 2021. No ano de 2022 ainda não há o número de procedimentos realizados na rede particular e o percentual pode ser um pouco maior.

A ABCDT representa as clínicas que atendem pacientes renais custeados tanto pelo SUS quanto por convênios privados. É uma diferença que merece mais estudos para entender o que pode estar ocorrendo, considerando que o universo de beneficiários de planos de saúde cresceu apenas 5% nesse período. A população brasileira cresceu 8%, então era de se esperar um volume bem maior de procedimentos hoje pelo SUS. Pode estar ocorrendo falta de diagnóstico precoce de doença renal entre a população que depende dos serviços públicos de saúde. Hipertensão e diabetes provocam doenças renais e nós temos alta incidência no país. Sem descobrir a doença a tempo de tratá-la, as pessoas podem ir a óbito por infarto, acidente vascular, entre outras complicações. Então muitas mortes que hoje ocorrem por doenças cardíacas talvez fossem evitadas cuidando-se dos rins previamente. O grande problema da doença renal é que ela é silenciosa, nem sempre surgem sinais. Seria necessário aumentar o acesso aos diagnósticos, que podem ser feitos por exames simples de sangue e urina.

A hemodiálise ambulatorial é um serviço essencialmente prestado por empresas privadas com ou sem fins lucrativos em todas as regiões do país, chegando a responder, em média, pelo atendimento de 95% dos pacientes. A única exceção é na Região Norte, onde 27,6% dos atendimentos são feitos diretamente por unidades de saúde pública. “O motivo é por ser um serviço altamente técnico, especializado e complexo, que demanda constante modernização e aquisição de equipamentos e insumos altos investimentos. Essa parceria da iniciativa privada com o SUS é louvável, mas o grande problema desse modelo de atendimento hoje é que o SUS não tem mantido reajustes anuais da Tabela SUS e os repasses estão defasados em ao menos 39%. É louvável que tenha havido uma pequena recuperação em 2023, porém é insuficiente. Muitas clínicas estão endividadas, muitas outras já fecharam e existe um risco real de pacientes ficarem desassistidos. Tem sido comum clínicas não aceitarem mais novos pacientes do SUS. Aumentam-se as vagas para convênios, mas para o SUS não mais.

Aumento de cateteres em vez de fístulas – Para que a hemodiálise seja realizada, é preciso que o paciente tenha um acesso vascular. Num cenário adequado, o paciente inicia o tratamento com fístula arteriovenosa – que fica permanente. Mas o estudo da ABCDT aponta um dado preocupante: a quantidade de pacientes que faz diálise utilizando usando um cateter de curta e longa permanência, em vez de fístula, vem crescendo de forma inadequada.Na região Sudeste, realiza-se mais procedimentos de confecção de fístula do que nos estados do Norte e Nordeste juntos, provavelmente por falta de cirurgia vascular. A fístula é a mais segura para quem está em tratamento dialítico. Os cateteres, mesmo os de longa permanência, oferecem maior risco de infecção e devem ser utilizados em situações específicas. Acreditamos que uma das causas para esse cenário é a desigualdade demográfica de especialistas, como nefrologistas e cirurgiões vasculares, que poderiam confeccionar a fístula nessas regiões.

De fato, de acordo com dados da Associação Médica Brasileira, o número de profissionais médicos na especialidade de nefrologia é de 5.494 (em 2020 eram 5.779), sendo que o Sudeste concentra 50,3% e Nordeste 20,3%. E na especialidade de cirurgia vascular são 5.741 médicos, com 51,9% no Sudeste e 18,6% no Nordeste. No Nordeste estão 28,7% dos renais crônicos. O Sudeste concentra 45%.

Diálise peritoneal não avança e até diminui – A diálise peritoneal, um tipo de terapia que pode ser feita até mesmo frequentemente em casa, em vez de crescer, vem perdendo espaço. Em 2012, 6,83% dos pacientes recebiam essa modalidade e em 2022, foram apenas 4,2%. Entre 2012 e 2022, 19 municípios deixaram de ofertar essa modalidade. “A diálise peritoneal (DP) no país sempre teve baixa representatividade e de 2015 em diante iniciou um declínio relacionado a uma série de fatores não ligados à terapia em si, mas a custos não suportados mais pelos prestadores de serviços e dificuldades logísticas. Em outros países, a diálise peritoneal chega a ser realizada por até 12% dos pacientes renais crônicos.

Tabela SUS defasada ameaça continuidade de clínicas – O estudo da ABCDT confirma mais uma vez, além de outros levantamentos anteriores, que os reajustes continuados na Tabela SUS são essenciais para manter a prestação de serviços dos centros de diálise e o atendimento dos pacientes que dependem do Sistema Único de Saúde. Outro levantamento da entidade aponta que nos últimos 6 anos, 46 clínicas de atendimento ambulatorial fecharam as portas em todo o país por insolvência financeira e outras 43 novas unidades de diálise foram criadas, ou seja, não houve aumento da rede. A tabela SUS chegou a ficar 5 anos sem reajuste para hemodiálise tradicional e na modalidade pediátrica, após 8 anos congelada, teve apenas em torno de 2% de aumento esse ano.  A hemodiálise pediátrica ambulatorial começou no SUS em 2014 em 54 cidades, com 133 pacientes e hoje apenas 44 continuam com o serviço. O número de pacientes cresceu em 40% e chegou a 187 em 2021. Entre 2012 e 2021, 10 municípios deixaram de ofertar a modalidade, sobrecarregando os municípios que permaneceram realizando o tratamento.

Discrepâncias regionais –  Entre as unidades de serviços de diálise existentes em cada região, a divisão entre serviços executados pelo SUS, por empresas privadas prestadoras de serviços de diálise ou por instituições privadas sem fins lucrativos se difere. No Centro-Oeste, 87,6% dos serviços são feitos por empresas privadas e 6,71% dos atendimentos são realizados em unidades da rede privada sem fins lucrativos. No Sudeste, s& atilde;o 59,49% por privadas e 35,39%, sem fins lucrativos. No Sul, 63,8% são privadas e 32,64% sem fins lucrativos e no Nordeste, 85,44% são privadas e 9,5% sem fins lucrativos. Já no Norte, 56,35% são privadas, 16,02% sem fins lucrativos e 27,63% são diretamente em unidades do SUS. É a única região do país com esse percentual. Em média, no país, unidades 100% do SUS correspondem a apenas 4% dos centros de diálise. Outros dados mostram que os estados do Nordeste (76,35%) têm mais empresas privadas prestadoras de serviços em diálise peritoneal; os estados do Sudeste (41,09%) têm mais empresas privadas prestadoras de serviços de diálise pediátrica e os estados do Norte não têm qualquer prestador de serviço privado nessa modalidade. Já no Norte, 56,35% são privadas, 16,02% sem fins lucrativos e 27,63% são feitas diretamente em unidades do SUS e não privadas.

Transplantes caem – Em 10 anos, o número de transplantes de rins entre falecidos e vivos no Brasil reduziu em 130 procedimentos, embora a expressão de aumentos vinha se sustentando de 2012 a 2019. Desde o início do período pandêmico, há uma progressiva redução. O Estado do Sudeste responde por 55,5% dos transplantes realizados no Brasil e aumenta o número de procedimentos realizados a partir de 2021, mas ainda realizada menos do que o recorde de 2.902 procedimentos em 2019. Ano passado, foram 2.540 transplantes. Já na Região Norte a recuperação é bem mais discreta, porém três vezes mais do que na sua pior marca em 2020, quando foram feitos apenas 14 cirurgias. Ano passado, foram 35, mas em 2012, chegou a ser 112, uma queda de 69% em onze anos. É crucial retomar o caminho do crescimento sustentado. Os nefrologistas do país seguem preocupados com a saúde renal dos brasileiros.Hoje existem mais de 2 mil pessoas internadas em hospitais apenas para receber a diálise, porque não há vagas em clínicas para atendê-las.

Há muitos impasses e desafios que dependem de soluções imediatas, como o cofinanciamento anunciado essa semana pela prefeitura de São Paulo e que precisa ser implementado em outros estados da federação, até que uma política de financiamento atualize os valores praticados e seja anualmente reajustado sob amparo de um bom indicador que mensure a inflação dos serviços de saúde.