No dia 15 de março foi comemorado como o “Dia Internacional do Consumidor” pelo movimento global organizado de associações de consumidores, fazendo referência ao mesmo dia no qual, em 1962, o presidente John Kennedy encaminhou mensagem ao Congresso dos Estados Unidos em promoção aos direitos dos consumidores.

Como já apontei anteriormente[2], a existência de “dia internacional” é ativista e militante: visa chamar a atenção a uma situação de fato ou de direito que merece esforço protetivo por parte do Poder Público e de toda a sociedade. Como é uma data internacional, também serve para destacar a pluralidade de ordens jurídicas[3] que incide sobre a nossa vida cotidiana, na qual a normatividade internacional é vetor de conformação e auxilia na interpretação das normas nacionais.

Busca-se também mostrar o caminho rumo à efetiva concretização do ideal vinculado ao “dia internacional” e, em certos momentos, alertar sobre a possibilidade de retrocesso na proteção já atingida.

Nessa linha, a Organização das Nações Unidas, por meio de sua Assembleia Geral, adotou as Diretrizes das Nações Unidas de Proteção do Consumidor em 1985 (resolução 39/248), posteriormente ampliadas pelo Conselho Econômico e Social (em 1999), e revistas pela Assembleia Geral na resolução 70/186 de 2015, como forma de criar um marco internacional de orientação aos Estados[4]. Entre as legítimas necessidades dos consumidores discutidas no plano internacional na revisão das Diretrizes da ONU feita em 2015, destaco, pelo impacto que possui na desigual realidade brasileira, a proteção à saúde dos consumidores[5].

Aproveitando, então, essa data “internacional”, o objetivo central deste artigo é gerar reflexão sobre a proibição do retrocesso consumerista, em um campo indispensável à vida, que vem a ser o das relações consumeristas envolvendo planos de saúde.

A questão que se coloca atualmente é a possibilidade da 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça decidir a favor da chamada “tese do rol taxativo” de cunho contratualista, pelo qual os planos privados de assistência à saúde só responderão, em regra, pelos procedimentos e eventos em saúde estabelecidos como sendo de cobertura assistencial obrigatória por resolução da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), à luz da Lei n. 9.656/98 combinada com a Lei n. 14.307/2022. Aceita-se o abrandamento dessa tese em casos excepcionais (tese do rol taxativo mitigado”), como, por exemplo, terapias com comprovada eficiência para tratamentos específicos e que contam com recomendação do Conselho Federal de Medicina (CFM).

Por outro lado, a “tese do rol exemplificativo” sustenta que a ANS, ao regulamentar as exigências mínimas a serem observadas pelos operadores privados, não pode restringir ainda mais a cobertura determinada por lei, em prejuízo do consumidor aderente. Assim, o rol serve para orientar o consumidor, apto a exigir tal cobertura mínima, mas não para prejudicá-lo, excluindo terapias e procedimentos adotados pelo seu médico. A “tese do rol taxativo” tem impacto negativo sobre os direitos dos consumidores em aspecto essencial da existência, que é o direito à saúde e à vida.

Em anos anteriores, houve diversos precedentes do Superior Tribunal de Justiça e de tribunais estaduais reconhecendo a determinação, com base em indicação médica, de cobertura pelos operadores privados de saúde de tratamentos e procedimentos ainda que não previstos expressamente no rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar, sempre que houvesse indicação médica[6]. A partir de nova posição da 4ª Turma do STJ, a disputa agora está em aberto em julgamento perante a 2ª Seção do STJ (3ª e 4ª Turmas), no exame de dois embargos de divergência (EREsp 1.886.929 e EREsp 1.889.704, julgamento em curso em 15.03.2022).

No plano internacional, há característica dos direitos humanos (nos quais se incluem os direitos dos consumidores, bem como os direitos à vida e à saúde) que deve ser levada em consideração: a proibição do retrocesso, também chamada de também “efeito cliquet”, princípio do não retorno da concretização ou princípio da proibição da evolução reacionária, que consiste na vedação da eliminação da concretização já alcançada na proteção de algum direito, admitindo-se somente aprimoramentos e acréscimos[7].

Em relação aos direitos sociais, a proibição do retrocesso é fruto de dispositivos convencionais que pregam o desenvolvimento progressivo de tais direitos (artigo 2º do Pacto Internacional sobre os Direitos Sociais, Econômicos e Culturais e artigo 26 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos), o que implica na proibição da erosão da proteção já alcançada. No Caso Acevedo Buendía, a Corte Interamericana de Direitos Humanos destacou a existência de um “dever de não regressividade” dos direitos sociais[8]. Por sua vez, o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em seu Comentário Geral nº 3, entendeu que “todas as medidas deliberadamente retroativas a este respeito exigirão uma análise mais cuidadosa e deverão ser plenamente justificadas por referência a todos os direitos estabelecidos no Pacto e no contexto de fazer pleno uso do máximo de recursos disponíveis” (parágrafo 9[9]).

No caso da defesa do consumidor dos planos de saúde, existe a proibição do retrocesso consumerista, que, no caso do “rol da ANS” é representada pelo risco de viragem jurisprudencial em face da modificação dos precedentes anteriores (a favor do “rol exemplificativo”).

A proibição de retrocesso consumerista não representa, como se vê nos precedentes internacionais citados, uma vedação absoluta a qualquer medida de alteração da proteção de um direito específico do consumidor. Como já defendi em obra anterior, há três condições para que eventual diminuição na proteção normativa ou fática de um direito consumerista seja permitida: 1) que haja justificativa também de estatura jusfundamental; 2) que tal diminuição supere o crivo da proporcionalidade e 3) que seja preservado o núcleo essencial do direito envolvido[10].

Com base nessa parametrização, a adoção do “rol taxativo absoluto” erode por completo a autonomia do direito à saúde consumerista e o faz depender da atuação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Já a discussão entre as teses do “rol taxativo mitigado” e o “rol exemplificativo” é mais nuançada, mas a primeira tese gera a insegurança de submeter o consumidor a uma avaliação casuística do que seria uma “situação excepcional”. Quanto ao efeito negativo referente à saúde financeira dos operadores de plano de saúde (que devem arcar com novos procedimentos e terapias), há que se ponderar que é possível a discussão sobre custos e reajustes, o que, aliás, já é feito.

Assim, tais facetas da promoção dos direitos do consumidor consagrados internacionalmente e apoiadas pelo movimento transnacional de associações de consumidores mostram-se também tópicos essenciais da defesa nacional da matéria, comprovando a existência de uma proteção multinível e um diálogo entre as fontes, bem como forjando um “consumerismo global”. Com a pandemia da Covid-19, ficou evidente a importância de se assegurar o direito à vida, que, no campo consumerista, passa pelo reconhecimento da vulnerabilidade dos consumidores e pela necessidade de se não excluir procedimentos e eventos determinados pela ciência médica para melhor salvaguardar a saúde dos consumidores.