A Lei nº 14.314/2022, que cria o piso nacional da enfermagem, deverá fixar o piso salarial da categoria em R$ 4.750. De início, pode parecer que a lei valoriza e beneficia os profissionais que nela se enquadram, no entanto, é insustentável e ignora a realidade da esmagadora maioria dos hospitais no país.

Sabe-se que há sempre um dilema a ser considerado ao estabelecer valores mínimos para uma determinada categoria. Caso esse piso esteja em um valor muito baixo, poderá ocasionar na precarização das relações de trabalho. Do mesmo modo ocorre quando o valor está muito alto, pois estimulará as demissões e as informalidades.

Estabelecer piso salarial que seja muito maior do que o que era pago anteriormente, sem ter conhecimento se as instituições hospitalares terão recursos para arcar com o aumento repentino de despesas é postura extremamente temerosa e que poderá levar a resultados catastróficos.

Quando se fala em hospitais, pode-se pensar nas grandes instituições hospitalares que frequentemente são veiculadas na mídia. No entanto, a maior parte deles, sobretudo aqueles que atendem majoritariamente SUS, há tempos enfrentam graves dificuldades financeiras, principalmente em decorrência da defasagem dos valores recebidos pelos serviços prestados ao Sistema Único de Saúde.

Apenas a título de exemplo, faz cerca de 20 anos que os valores recebidos pelos serviços prestados ao SUS não são atualizados, acarretando no fato de que os hospitais acabam tendo que buscar recursos de outras fontes para cobrir os prejuízos dessa defasagem. Não por acaso, o subfinanciamento da saúde pública levou os hospitais a um endividamento que atualmente chega a R$ 20 bilhões. Tudo isso também acarreta no sucateamento das estruturas dessas instituições e em dificuldades para arcar até mesmo com contas básicas, como as de energia elétrica.

O déficit financeiro decorrente dos atendimentos pelo SUS é de cerca de 11 bilhões reais ao ano. Apenas entre 2010 e 2019 foram fechados 15.944 leitos pediátricos, sendo que 13.800 deles eram leitos disponibilizados pelo SUS. Ainda, nos últimos seis anos 315 hospitais filantrópicos encerraram suas atividades e com eles 7.000 leitos do SUS também foram fechados.

Além do mais, a maior parte dessas instituições são os únicos hospitais da cidade onde se localizam, sendo frequentemente distantes dos grandes centros e a única opção da população local para se socorrer quando enfrentam problemas de saúde.

Como se não bastasse, cerca de três milhões de pessoas possuem vínculo de trabalho direto ou indireto com os hospitais filantrópicos, de tal modo que a manutenção das atividades realizadas por essas instituições é questão de interesse nacional.

Implementar o referido piso salarial é considerar que a realidade de um grande hospital em uma metrópole é a mesma de um pequeno hospital no interior. O valor estabelecido, que em uma grande cidade pode ser até baixo para o custo de vida dos profissionais da enfermagem, para um hospital de uma cidade pequena provavelmente irá significar a impossibilidade de manutenção dos referidos profissionais e até mesmo de suas próprias atividades.

Conforme estimativa do Ministério da Saúde, o aumento dos gastos ocasionados pela implementação do piso salarial poderá chegar a mais de R$ 20 bilhões ao ano e acarretar em aumento de 63% no total das folhas salariais do setor de saúde.

É unânime entre os hospitais que o piso salarial irá acarretar em demissões em massa de profissionais de enfermagem e inviabilização das atividades de muitas dessas instituições. Por tal razão, é preciso repensar a implementação dessa lei, sob pena de prejudicar não somente os hospitais, mas também a própria classe da enfermagem.

Nesse sentido, tramita Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 7.222, no Supremo Tribunal Federal, que visa suspender liminarmente a nova legislação e, posteriormente, seja declarada a sua inconstitucionalidade. A ação foi ajuizada pela Confederação Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços (CNSaúde). Dentre os vários argumentos que fundamentam a petição inicial estão a falta de análise do impacto econômico, intervenção desproporcional do estado em área regida pela liberdade de contratação, substituição indevida dos sindicatos pelo poder público nas negociações salariais de iniciativa privada, o agravamento da precarização dos serviços de saúde (em razão da diminuição do quadro pessoal e dos recursos disponíveis para as despesas correntes), risco de dano irreparável, violação dos princípios da razoabilidade, dentre outros.

Cumpre observar que há hospitais que estão se valendo de medidas judiciais não apenas para se resguardar dos impactos econômicos provenientes da referida lei, mas também para aumentar de maneira considerável e permanente os valores recebidos dos entes públicos pelos serviços prestados por essas instituições.

Caso a Lei nº 14.314/2022 permaneça em vigor, certamente haverá ainda mais discussões jurídicas acerca de sua aplicação. Uma delas é saber se o referido piso está vinculado à carga horária ou não. Isso porque é possível que o pagamento do valor integral do piso seja aplicado somente aos profissionais que atuem na jornada máxima prevista na Constituição Federal, que é de oito horas diárias e 44 horas semanais. Nesse sentido é a jurisprudência firmada pelo Tribunal Superior do Trabalho, que estabelece que: “I – Havendo contratação para cumprimento de jornada reduzida, inferior à previsão constitucional de oito horas diárias ou quarenta e quatro semanais, é lícito o pagamento do piso salarial ou do salário-mínimo proporcional ao tempo trabalhado” (TST, OJ 358 da SBDI-1).

O certo é que, independente do resultado do julgamento pelo STF, com bom senso por parte do poder público e a adoção das medidas adequadas por parte dos hospitais, é possível contornar os possíveis prejuízos decorrentes da nova legislação, bem como melhorar definitivamente a saúde financeira dessas instituições, que há tempos vêm sofrendo com o descaso do poder público.