Um ano após a decisão da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que julgou a ilegalidade o reembolso assistido, clínicas e operadoras de planos de saúde ainda enfrentam disputas judiciais por todo país. Tribunais inferiores têm seguido o entendimento do STJ e decidido na maioria das vezes à favor dos planos de saúde. Para as operadoras, o reembolso de serviços médicos solicitado mediante o acesso das clínicas ao dado do beneficiários favorece fraudes que impactam a sinistralidade dos convênios.

O reembolso assistido é uma modalidade de pagamento oferecida por clínicas não conveniadas a beneficiários de planos de saúde. Por um lado, elas oferecem acesso aos serviços médicos, sem a necessidade de um desembolso direto. Depois, solicitam o reembolso aos convênios utilizando o login e senha dos beneficiários. Para as operadoras, a modalidade permite que as clínicas cometam fraudes sem a anuência dos pacientes, com a possibilidade de solicitar valores mais altos dos procedimentos médicos.

Os planos de saúde, que sofrem com perdas financeiras desde o ano passado, afirmam que fraudes nos pedidos de reembolsos são um dos elementos que mais impacta o setor. De acordo com o levantamento da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), entre os anos de 2020 e 2022, as despesas das operadoras com os reembolsos aumentaram mais de 90% no mesmo período. Segundo a entidade, as fraudes podem comprometer o serviço dos convênios, que já acumulam prejuízos estimados em mais de R$10 bilhões.

Entre as práticas fraudulentas, a FenaSaúde destaca:

  • Empréstimo de carteirinha
  • Fracionamento de recibo
  • Informações falsas na contratação do plano
  • Falso estado clínico
  • Criação de empresas falsas
  • Golpes virtuais

“De 2018 a 2022, as associadas da FenaSaúde registraram 1.728 notícias-crime e ações cíveis relacionadas com fraudes, com crescimento expressivo ano a ano. Só nos últimos dois anos esses casos aumentaram 43%”, afirmou Vera Valente, diretora-executiva da FenaSaúde.

Além disso, um relatório lançado em novembro pelo Instituto de Estudos da Saúde Suplementar (IESS), feito em parceria com a consultoria Ernst Young (EY), estima que fraudes e desperdícios causaram aos planos perdas de até 12,7% das suas receitas no ano passado, um prejuízo estimado em R$ 34 bilhões de reais.

Entendimento do STJ sobre o Reembolso Assistido

Há um ano, a 3ª Turma do STJ julgou a ilegalidade do reembolso assistido. Ao analisar um recurso especial ajuizado pela operadora Notre Dame Intermédica contra clínicas que ofereciam o serviço, os ministros entenderam que, sem a devida regulação, o método é inseguro e pode causar danos ao sistema das seguradoras.

“Sem lei específica ou regulamentação expressa da Agência Nacional de Saúde (ANS), não há como permitir que clínicas e laboratórios não credenciados à operadora de plano de saúde criem uma nova forma de reembolso (“reembolso assistido ou auxiliado”), em completo desvirtuamento da própria lógica do sistema preconizado na Lei n. 9.656/1998, dando margem, inclusive, a situações de falta de controle na verificação da adequação e valores das consultas, procedimentos e exames solicitados, o que poderia prejudicar todo o sistema atuarial do seguro e, em último caso, os próprios segurados”, acordaram os ministros do STJ.

Segundo o relator da ação, ministro Marco Aurélio Bellizze, ao aceitar que a clínica faça o pedido de reembolso sem que haja um desembolso, o beneficiário assina uma “carta branca” para que a prestadora de serviço médico solicitem quaisquer exames e consultas e pelo valor máximo da tabela de reembolso do plano de saúde. “E o que é pior, caso a operadora negue o reembolso, em razão de algum problema formal (falta de documentação, por exemplo), a prestadora de serviço fará a cobrança dos valores (referentes à ‘tabela cheia’ do plano) do próprio segurado”, destaca.

De todo modo, a decisão afirmava que não há provas de que as clínicas que oferecem a modalidade pratiquem fraudes. Para os ministros, a falta de lei específica e de regulamentação da Agência Nacional de Saúde Suplementar não permite que o reembolso assistido possa ser oferecido aos beneficiários de planos de saúde.

Disputas judiciais

A interpretação da 3ª Turma do STJ já surte efeito nas decisões dos tribunais inferiores. Nas disputas judiciais em São Paulo, os magistrados do Tribunal de Justiça (TSJP) acolheram o pedido das operadoras para a revisão do ressarcimento quando são feitos na modalidade do reembolso assistido.

Em agosto, a 3ª Vara Cível do Fórum Regional VIII da comarca de São Paulo condenou a clínica Shiloh Medicina Diagnóstica e Reprodutiva por se beneficiar com pedidos de restituição com valores acima do mercado com o “reembolso assistido”. O juiz Luis Fernando Nardelli acolheu a ação movida pela Amil Assistência de Saúde e reconheceu que a clínica “está a se valer da prática fraudulenta denominada ‘reembolso sem prévio desembolso’ e estaria igualmente se beneficiando com pedidos de reembolso em valores excessivos referentes a serviços laboratoriais que nos últimos anos chegou ao absurdo de R$ 2.870.564,15”.

Ainda de acordo com o magistrado, “a prática resume-se à cobrança de valores exorbitantes decorrentes de serviços de exames laboratoriais realizados pela ré, que não é credenciada pela autora”. E que, durante a realização dos exames, “a ré induz o usuário a acreditar que a solicitação de reembolso sem prévio pagamento da quantia seja prática legal”.

Dessa forma, o juiz julgou procedente a ação “para condenar a ré a se abster de atender os beneficiários da autora, sem exigência de pagamento no ato da prestação de serviço, de se abster de efetuar o pagamento em favor de si própria em nome do beneficiário e que se abstenha de coagir os beneficiários a fornecerem dados sigilosos e que se abstenha de solicitar o reembolso/enviar notificações/abrir NIPS em nome dos beneficários, tudo sob pena de imposição de R$ 10.000,00 por ato que importe descumprimento do comando e que a autora seja autorizada a negar o reembolso das despesas apresentadas oriundos da ré referentes aos beneficiários da autora”.

Nesse mesmo sentido, os desembargadores da 1ª Câmara de Direito Privado acolheram o pedido da operadora Care Plus Medicina que suspendeu a obrigação do pagamento do reembolso assistido. Em referência ao entendimento da 3ª Turma do STJ, os magistrados decidiram que os beneficiários do plano não possuem o direito ao reembolso porque não houve o prévio desembolso dos custos médicos.

“Desse modo, se os beneficiários do plano fornecido pela agravante não despenderam nenhum valor a título de despesas médicas e de laboratório, não possuem, em princípio, direito ao reembolso, o que torna os pedidos nulos de pleno direito” afirmou o relator da ação, o desembargador Rui Cascaldi.

Em outro caso parecido, os magistrados da 8ª Câmara de Direito Privado do TSJP negaram o recurso de clínicas de saúde contra a decisão que as impede de acessar o login e senha dos beneficiários da Sul América Companhia de Seguros de Saúde. Segundo os desembargadores, além da apropriação dos dados, as solicitações de exames apresentadas não tinham relação com o quadro clínico dos pacientes.

As clínicas haviam perdido uma ação movida pela operadora, que alegava uma adulteração no quadro clínico do paciente para realizar um procedimento com finalidade estética. Na decisão de 2º grau, os magistrados deram destaque ao impacto dos pedidos fraudulentos de reembolso nas operadoras que, além dos danos financeiros, podem receber multas administrativas ou suspensões — no caso, os réus abriram uma Notificações de Intermediação Preliminar (NIP) contra a operadora na ANS.

Acesso a procedimentos

Para o advogado Bruno Chatack Marins, que atuou na defesa de clínicas que utilizam a modalidade do reembolso assistido, não há relação entre as fraudes e os reembolsos mediados pelos consultórios. Para Chatack, ao possibilitar que os pacientes não desembolsem imediatamente o valor do tratamento, o reembolso assistido facilita o acesso dos beneficiários aos serviços de saúde oferecidos por clínicas não conveniadas.

Segundo ele, a modalidade funciona como um financiamento entre os pacientes e os consultórios. “A clínica honra esse pagamento ao médico em nome do paciente, em troca de uma dívida. Lá na frente, quando o beneficiário receber seu reembolso, evidentemente, deve pagar o valor que foi a própria clínica. Isso possibilita com que o médico receba antes, com que a clínica garanta o procedimento e que o paciente não tenha que se endividar, não tenha que pegar um empréstimo para fazer aquele procedimento com o seu próprio paciente”.

As operadoras, entretanto, afirmam que, sob o pretexto de auxiliar os pacientes, o reembolso assistido representa uma série de inseguranças para os beneficiários e para os planos. De acordo com o superintendente da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), Cássio Ide Alves, a modalidade permite que clínicas tenham acesso a dados sensíveis dos beneficiários e que possam estipular preços dos atendimentos baseados nessas informações.

“Imagine que o paciente vai à clínica de um fraudador. Com acesso aos dados, ele descobre qual é o valor máximo do valor disponível para reembolso, por exemplo R$1.000. Então, em um serviço que custa R$100, ele pode solicitar o valor de reembolso de R$1000”, explica.

A associação acredita que, por não existir parâmetros regulatórios, o reembolso assistido pode lesar tanto os planos quanto o beneficiário. Segundo Ides Alves, “reembolso sem o prévio desembolso faz com que não exista um preço. É um crime contra a economia popular. O valor do reembolso passa a ser o tamanho do seu bolso”.

Em nota, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) ressaltou que os dados de login e senha dos beneficiários são informações pessoais, sigilosas e intransferíveis. Para a agência, as solicitações apenas devem ser feitas pelo beneficiário ou seu representante legal, podendo ato contrário caracterizar-se ilegalidade diante da legislação vigente.

Além disso, a ANS ressaltou que não regula a atividade das clínicas prestadoras de serviço, apenas das operadoras de planos de saúde e sua relação com os pacientes. A agência orienta que os consumidores que se sentirem lesados devem denunciar a possível prática criminosa ao conselho profissional pertinente (quando for o caso), ao Ministério Público, à polícia, ou aos órgãos com a devida alçada para apuração.

Fraudes mais complexas

Para o advogado Lucas Miglioli, sócio fundador da M3BS Advogados, e que atua com assessoria jurídica para o setor da saúde, muitas práticas que burlam as normas dos planos de saúde podem ser enquadradas como fraude. Além dos golpes envolvendo pedidos de reembolso, existem fraudes que vão desde simples mentiras do beneficiário até ações mais complexas envolvendo prestadoras de serviço. Por exemplo, uma fraude corriqueira é a prática da divisão da consulta em dois recibos.

“Se a pessoa faz uma consulta no valor de R$1.000 reais, e o reembolso dela tem um limite de até R$500. Se ela acaba pedindo dois recibos, com outro CPF, para completar esses R$500, ela teria dois recibos de R$500, isso é uma fraude que, aliás, muita gente acha que isso não é fraude”, afirma.

Mioglioli acredita que também é necessário um trabalho de conscientização dos beneficiários. “Aquela pessoa pode não enxergar problema nisso [fraudes], mas, de alguma, forma impacta no coletivo. As fraudes em plano de saúde passam muito por isso, é uma questão de impacto de cada ato individual no coletivo, porque é um sistema mutualista”.

As decisões judiciais citadas estão disponíveis com os seguintes números:

REsp 1.959.929 / SP (2021/0021933-3) (STJ)

Processo nº 1005611-87.2023.8.26.0008  (TJSP)

Agravo de Instrumento nº 2266566-44.2022.8.26.0000 (TJSP)

Agravo de Instrumento nº 2135148-46.2023.8.26.0000 (TJSP)