A Constituição de 1988 reconhece o direito à saúde como um direito fundamental, relacionando-o diretamente com o direito à vida e à dignidade da pessoa humana. Segundo o artigo 196 da CF, “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Maria Celina Bodin de Moraes define o direito à saúde como “direito fundamental, o qual deve ser entendido como um direito subjetivo público, exigível perante o Estado, que tem o dever de garantir as condições necessárias para sua efetivação”, afirmando estar “intimamente relacionado com outros direitos fundamentais, como o direito à vida, à liberdade e à dignidade da pessoa humana, e deve ser efetivado de forma universal e igualitária”.[1]

Embora assegurado em nível constitucional, sua concretização pressupõe medidas efetivas por parte do Poder Público, tais como o acesso a serviços de saúde, medicamentos, tratamentos e a novas tecnologias, bem como políticas públicas que promovam a prevenção de doenças e garantam o bem-estar da população.  Como bem observou Ana Paula Barcellos, “o direito à saúde deve ser compreendido como um direito a um mínimo de bem-estar cuja eficácia depende fundamentalmente de políticas públicas adequadas, que devem ser implementadas pelo Estado”.[2]

Na implementação desses programas e políticas públicas, é necessário investimento em infraestrutura, equipamentos, pesquisas e qualificação dos profissionais de saúde, bem como a participação da sociedade no planejamento e gestão do sistema de saúde. Como bem sintetiza Lenir Santos, “o acesso à saúde é um direito fundamental, garantido pela Constituição, que deve ser efetivado pelo Estado, pelo setor privado e pela sociedade como um todo.”[3]

Há, no entanto,  um enorme vácuo entre o que deveria ser feito e o que de fato é realizado pelo Estado na busca da plena implementação do direito constitucional à saúde. Desse vácuo decorre uma judicialização cada vez mais acentuada, a qual representa nada mais do que a dificuldade de acesso aos serviços de saúde.

Nesse contexto, derivado do vazio entre o que o Estado deveria fazer e aquilo que efetivamente faz, surge o sistema privado de saúde suplementar, no qual os usuários pagam planos de saúde para ter direito a serviços médicos privados. Como não poderia ser diferente, assim como no sistema público de saúde, aqui também ocorrem deficiências na prestação do serviço.

A incidência do Código de Defesa do Consumidor e da legislação específica (Lei dos Planos de Saúde, Lei 9.656/1998), possibilitou eficazes mecanismos de defesa por parte dos beneficiários do sistema privado de saúde e estimulou uma judicialização ainda maior do que a do setor público.

A princípio, nenhum problema, principalmente porque nossa CF garante o pleno acesso à Justiça, erigindo-o à categoria de direito individual (CF, art. 5º, XXXV) e cláusula pétrea (CF, art. 60, § 4º, IV). Ocorre que essa judicialização no setor tem se tornado um fenômeno cada vez mais frequente, como bem lembrou o ministro Luís Roberto Barroso: “não se pode ignorar a realidade atual dos conflitos entre os usuários de planos de saúde e as empresas operadoras, especialmente em virtude da negativa de cobertura de procedimentos médicos e/ou hospitalares. A judicialização desses conflitos, com a concessão de liminares em plantão judiciário, tem se tornado cada vez mais frequente”.[4]

O aumento da judicialização da saúde suplementar no Brasil tem sido atribuído a diversos fatores, dentre os quais a falta de clareza das cláusulas contratuais dos planos de saúde, a negativa de cobertura de procedimentos médicos e/ou hospitalares, a insuficiência da rede pública de saúde e a necessidade de tratamentos de alto custo.

Grande parte dos conflitos que acabam sendo levados a juízo referem-se às cláusulas financeiras contratuais. Foi o que ocorreu em 2021, quando a Fundação Procon/SP registrou o recorde de 962 reclamações (referência do mês de janeiro) de consumidores contra os reajustes de planos de saúde, contra apenas 9 reclamações no mesmo período no ano de 2020.

As principais causas de insatisfação dos consumidores estavam concentradas na cobrança retroativa dos reajustes nas mensalidades de setembro a dezembro de 2020, os quais se encontravam suspensos pela ANS (Comunicado 85), e na tentativa dos planos de saúde de impor reajustes sem justificativa plausível, na medida em que houve redução no índice de despesas hospitalares reembolsáveis e cancelamento das cirurgias eletivas,  o que obviamente não justificava aumento no valor das mensalidades.

Os órgãos de defesa do consumidor, notadamente o Procon de São Paulo, consideraram tais condutas como prática abusiva (CDC, artigo 39, X), tendo o órgão paulista requerido à ANS a imediata redução dos reajustes anuais aplicados aos planos coletivos para o mesmo patamar dos planos individuais (8,14%). Além disso, ajuizou Ação Civil Pública contra a própria ANS e todas as operadoras, por meio da competente Procuradoria do Estado de SP.

Polêmicas jurídicas como essas fazem explodir o número de ações no Judiciário relacionadas a demandas contra as operadoras dos planos de saúde. De acordo com estudo realizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[5], em 2019, foram registrados 1,6 milhão de processos relacionados à saúde no Judiciário brasileiro, dos quais cerca de 70% foram demandas contra planos de saúde. O levantamento também aponta que os processos relacionados à saúde suplementar cresceram 33,7% entre 2016 e 2019.

Segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)[6], em 2020 foram registrados cerca de 29,7 mil processos judiciais relacionados à saúde suplementar no país. Desses, aproximadamente 52% referiam-se a pedidos de cobertura de procedimentos, medicamentos e materiais, enquanto os demais envolviam questões relacionadas a reajuste de mensalidades, cancelamento de contratos, entre outras.

Comparada com outros países, a judicialização da saúde suplementar no Brasil é mais recorrente. Países como a Inglaterra e o Canadá, nos quais o sistema de saúde é público e universal, os usuários têm acesso a todos os tratamentos e medicamentos necessários sem ter que pagar planos de saúde ou recorrer à Justiça. Do mesmo modo em países com sistema de saúde misto, como a França e a Alemanha. Já nos Estados Unidos, a judicialização é comum em razão da alta de custos dos serviços de saúde privados.

Se a judicialização é uma decorrência natural da economia de mercado ou se existe uma disfunção anormal no sistema privado de saúde, é tema controverso.

Cecilia Ramos Rocha e Christiane Caldas afirmam que “o aumento do número de ações judiciais na área da saúde suplementar se deu principalmente em virtude de as operadoras de planos de saúde negarem cobertura a tratamentos e procedimentos que deveriam estar incluídos nos contratos celebrados com seus beneficiários. Nesse contexto, a judicialização se apresenta como um mecanismo importante para garantir o acesso à saúde”[7].

No mesmo sentido, Andréa Leite entende que “a possibilidade de buscar no Poder Judiciário a efetivação do direito à saúde se apresenta como uma garantia fundamental do indivíduo diante da omissão ou da negativa do Estado ou dos planos de saúde em prestar assistência médica adequada”[8].

Para uma segunda corrente, a judicialização excessiva provoca desequilíbrio econômico no setor e gera insegurança jurídica, com o consequente aumento das mensalidades e perda de qualidade dos serviços prestados. Marcelo Machado Mello e Flávia Cristina Gomes sustentam que “a judicialização da saúde suplementar tem gerado inúmeros problemas, como o aumento dos custos para as operadoras de planos de saúde, a perda de qualidade dos serviços prestados e o desequilíbrio econômico no setor. Além disso, muitas vezes as demandas judiciais são apresentadas sem a devida fundamentação médica, o que pode levar a decisões equivocadas”[9].

No mesmo sentido, Luciana Dias Martins: “a judicialização da saúde suplementar pode ser prejudicial não apenas para as operadoras de planos de saúde, mas também para o próprio sistema de saúde como um todo. Isso porque, ao privilegiar o acesso individual à saúde em detrimento do acesso coletivo, a judicialização pode contribuir para a desigualdade no acesso aos serviços de saúde”.[10]

A jurisprudência brasileira tem evoluído no sentido de buscar um equilíbrio entre o direito à saúde e a sustentabilidade do sistema de saúde suplementar. O STJ já decidiu que a cobertura de medicamentos deve ser analisada caso a caso, levando em consideração a eficácia, a segurança e a necessidade do tratamento: “a relação jurídica estabelecida entre o paciente e a operadora de plano de saúde é pautada por regras de ordem pública, cabendo ao Judiciário, em cada caso concreto, a análise e a aplicação das normas e princípios que regem a matéria”.[11]

A judicialização da saúde suplementar é um problema complexo que afeta a relação de milhões de consumidores com operadoras de seguro de saúde. A solução da problemática demanda a busca por um equilíbrio entre o direito à saúde, respeito aos ditames constitucionais e ao Código de Defesa do Consumidor, com a sustentabilidade do sistema.

Essa deve ser a bússola a nortear o encaminhamento desse grave problema resultante do binômio insatisfação do consumidor e intervenção do Judiciário nas relações contratuais. O fortalecimento dos mecanismos extrajudiciais de solução de conflitos, com o maior empoderamento dos órgãos de defesa do consumidor para promoverem conciliação entre operadoras e segurados, conferindo força definitiva aos acordos celebrados, tal como já acontece nas câmaras arbitrais, é um caminho a ser perseguido por uma nova legislação, mais avançada e focada na eficácia e celeridade.

O incentivo na busca de novas ferramentas jurídicas é imprescindível para o escoamento das demandas judiciais em excesso e redução do enorme custo econômico e social decorrente da judicialização desenfreada. Em 2022 e 2021, o Procon-SP obteve índices de resolutividades superiores a 70% em reclamações de consumidores contra planos de saúde[12]. Para tanto, é importante que os órgãos protetivos se mantenham atuantes, com técnica e qualificação para a manutenção dos resultados positivos, os quais além de satisfazer o cidadão, diminuem a sobrecarga do Poder Judiciário.